sexta-feira, 31 de julho de 2009

santa catarina


Manuel Alvarez Bravo

Olho nelas. A morte aproxima-se. Elas riem. Inventam disparates para rir. Para nunca estarem sozinhas. Para que a gargalhada aqueça a vida da outra. Olho nelas. A natureza delas. Mãe e filha. À deriva. Porque a notícia da morte nos põe náufragos. Porque não é fácil aceitar que quem é hoje não será será amanhã. Porque ele ali está. Amarelo. Amarelo auto-bronzeado. Amarelo Algarve. Com máscara. Na ignorância. Será que sabe? Será que calcula? Que pensará? Que pensaremos nós perto da ida? Sentiremos a inutilidade de tudo? Os soluços e os nós na garganta? Saberá que as duas o olham pela última vez? Sempre pela última vez. Ainda que neguem. Que o neguem. Sermos devorados vivos. Existe canibalismo na doença. E os hospitais testemunham. Daí o seu peso. A sua cor cinzenta, amarelada. Olho nelas. E vejo-me na impossibilidade de fazer mais que não olhar. Que não estar. Faço palavras cruzadas. Panelas. Dialecto provençal. Afirmativa. Final.

Eu devo ter um cheiro igual ao de alguns animais. Semelhante a alguns animais. Um cheiro forte. Pestilento. Colado à pele. Colado à carne. Um cheiro que não é humano suportar. Um cheiro enjoativo. Nojento. Intenso. Que se arrasta a cada passo. Que não se faz sentir inicialmente. Que descansa no inícios. Para que estes existam. Para que haja um ponto de partida. Mas que a uma dada altura se liberta. E expande. E fortalece. E tudo e todos desaparecem. Fogem. Sem uma palavra. Sem um beijo. Sem um aperto de mão. Sem um olhar. Sem um adeus. Sem um nada. Nada. Nada. Terei de me lavar? De me esfregar com o detergente da loiça? De me escamar? De me pelar? Não sei. Não sei porque não o sinto. O meu cheiro assustador. De pessoas. De homens. De amantes. Vomitam-se. Pois vomitem-se. E tenham náuseas. E sintam-se prestes a parir. Engravidem. Na cabeça. Nas mamas. No corpo. E vomitem-se. Em saliva. Em bílis. Amarela. Cinza. Esbranquiçada. Rosa. Azul. Um arco-íris de entranhas. Bem feito. Bem feito. Sou gente. E mereço uma palavra. Sou gente. E nem sou gente convencional. Sou gente.

Tenho dificuldades em entender-te. Em entender o teu sentido de humor. Em perceber o que queres. E que procuras? Questionas. Respondes. Tens sonhos. De culpa. De imagens. Os meus falam em aceitação. E nos perigos de ser assim. Desconcertante. Homem desconcertante.

O miradouro estava cheio. Cores e coloridos. Vozes. Línguas estranhas em palavras gritadas. Penteados em cachos. Risos e fumos. Barcos ao fundo. E luzes. E pontes. Uma ali. Outra além. Os telhados que se acercam. E os olhos. Os olhos que doentes de tanta gente se fecham. Os corpos que se encostam. E eu vou lá. Espreito. Aproximo-me. Mas somente de manhã. Somente quando me desloco para cima. Para ver os restos. A porcaria. O lixo. E todo o absurdo humano. Todo o absurdo das noites de divertimento. Como quem quer esquecer a vida. Como quem bebe para não viver. O absurdo de destruirmos tudo o que tocamos. As garrafas. Os copos. E os ambientalistas. Os vegetarianos. Todos. Deixam o lixo ali no chão. Porque a noite é longa. E nós. Nós temos de nos divertir. E beber. E rir. E pago-te um copo. E tu a mim. E jantamos? Jantamos. Fazes tu o jantar. E quando menos esperares enfio-te o pano de cozinha na boca e fodo-te por trás. Assim. A seco.

3 comentários:

  1. E porque me abandonaste que te amo. Porque já não fazes parte da minha e da tua banalidade. Estás intocado e preservado pela distancia. Como um deus na morte. Como um amante que me olvidou, que já não se desgasta no devir, nem na sujidade dos dias. É certamente um amor desumano. Daí a sua força e heroismo. Mas a obra não deve ser sempre maior que o seu criador? Mesmo que o aniquile, é sempre mais romantico que uma morte adiada e temida a cada dia que passa. "Nós já fomos comos vós, assim como um dia serás como nós". Assim profetizam os sábios ossos.

    ResponderEliminar