quinta-feira, 9 de julho de 2009

A matar


Nicholas Sinclair - Palermo 5


Poderia ter entrado um pombo pela janela. Para testemunhar. Ou uma barata vinda das canalizações da cozinha. Ou algum rato vindo do baixo rio. Mas não. Ninguém viu. Niguém pressentiu. Ou talvez ouvissem. Sim. Ouviam. Como não ouvir?

Descortinar. Os olhos. Senti-los. Os meus que se espelhavam... tristes? Não sei. Quando me vi no espelho pareceram-me meio... perdidos? Como se espelhassem um choro interior. Uma incapacidade em chorar todos os males do mundo, todos os males em mim. Compreender. Compreender aquele teu olhar em mim. Que se espelhava alegre, que se espelhava... inquisitivo? Inquiridor. E não sei porquê. Não sei. Mas choro. Como se tivesse que finalizar assim. Como se as lágrimas fossem um ponto final. À noite. Romper o dia. Romper-me neste dia de dores várias. O alto nos joelhos, a garganta irritada, as pernas que tremem, o quente da cara, o rasgo no maxilar, um levantar dos braços a custo e um dorido trémulo empapado de sono.

Serei capaz de amar até ao enjoo. Até me sacudires da pele. Até olhares em mim e não perceberes porquê. Não entenderes o motivo. Duvidares das minhas convicções. Colo-me. Ou não? Deixo-me colar? Quando me quiseres libertar vais ter de me arrancar e rasgar-me. Para que me reconstrua. Para que me renove, e ressuscite. Em dor. Aos pedaços. Deixo-me levar. Leva-me. Agarra-me e leva-me. E vai abandonando-me para que me sinta só. Para que sinta o silêncio. Já ouviste falar de gente louca? E insana? Eu já. Conheco-me. Conhece-me. Conheces-me. Era eu ali. A tal. A. Voltar a viver, depois de ter morrido é sinónimo. Tive receio. Receio de cair nos teus braços. Que me deixasses cair e eu não me levantasse. Desmaiasse. Ou, fugisse.

É de manhã.

Vou ver-me no espelho. Ou espero. Espero pelo banho. Fumo um cigarro. E sim. Ontem teria-te dado o mundo caso mo pedisses. À força. À força dos estalos. E das lambadas. A primeira arma ficou esquecida.
Sabes é-me sempre estranho. Estranho o que sinto. Um misto de querer e medo. Um misto de dor e prazer. Um misto de amor e rebeldia. Um misto de "não quero" e "força". Um misto de "faça-se em mim a tua vontade" e "tem piedade". É estranho. É estranho que após todos estes anos eu mantenha esta duplicidade. E ela se apresente como se eu tivesse algures no tempo passado. Vacilo. Mas deixo-me levar. És tu quem puxa e empurra e espreme e tacteia e sova e controla e domina. E por seres tu. Eu deixo-me.

Banho. Doloroso. Dolorido. O meu corpo apanhou um escaldão e visto-me a medo. Com cuidados.

Era capaz de recomeçar agora. Devagar. Mas recomeçar. Tenho uma corrente de ar dentro de mim. Entra e sai ar do meu corpo. Pelos buracos do meu corpo. Tudo fresco. Lavado. Limpo. Dolorido. Quente. Trémula.

Mais calma? Mais calma.

Ai.

Há muito para dizer. E sentir. E sentir-te. E ser tua. Tenho os olhos empastados de imagens.
Adoro-te.

1 comentário:

  1. O ser amado/desejado por inerência remete para um espaço ideal, que reune todas as minhas memorias. Num certo sentido com a morte tantas vezes anunciada das ideologias, o amor e o desejo é quanto resta da possibilidade de realizar a nosso propria revolução individual e hedonista. Tamem algo secreta e intima como as tuas linhas acima demonstram... Um rio nao necessita de motivos ou causas. Necessita de uma foz para desaguar, e tambem de fortes margens para o conter.

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