quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Pedras


Kevin Bubriski

Existe um palco. Nele um homem sentado numa cadeira. A seu lado, a cerca de três metros, um outro homem está sentado numa outra cadeira. A cadeira onde está sentado o primeiro homem de vez em quando range. Os dois homens não se olham. Olham para a sua frente. No publico sentado na sua frente. Os dois homens estão sentados como se desconhecessem a existência um do outro. O primeiro homem veste um casaco de malha bege que pende do seu lado direito. Do lado onde o segundo homem se encontra sentado. Se o segundo homem o olhasse poderia talvez sentir a leveza com que o casaco de malha pende do corpo magro do primeiro homem. Mas o segundo homem não o olha. Olha no publico. Olha em nós. Onde me encontro. Onde me encontro sentada. Onde me sentei depois de descer o corredor escuro com carpete vermelha. Sei que é vermelha porque lhe sinto o cheiro a mofo. Porque assim quero que seja. Porque assim a imaginei. Olho nos dois homens que olham em nós. Tento ver se os seus olhos me olham. Não consigo. Está demasiado escuro e os homens demasiado parados. Observo a gola da camisola de lã azul do segundo homem sentado no palco. A gola está subida mas enrolada, desajeitadamente dobrada sobre o pescoço. Tenho vontade de endireitar a gola do segundo homem sentado no palco. De lhe dar um jeito. Tento abstrair-me da gola e olho nas pessoas que sinto sentadas em ambos os lados. O publico a meu lado faz parte da cena. Também ele se encontra parado e imóvel. Por vezes oiço ranger uma cadeira. Tento verificar se é a cadeira do primeiro homem. Por vezes é. Noutras o som vem de trás de mim. Alguém. Talvez um outro homem se tenha sentado numa outra cadeira que range da mesma forma que a cadeira onde está sentado o primeiro homem sentado no palco. Olho nos dois homens. Nos dois homens com mãos caídas entre as pernas. Olho e aguardo. Aguardo que algo aconteça. Que digam algo. Que se levantem. Que comecem. Que se olhem. Aguardo. O publico a meu lado aguarda? Não sei. Olho no homem sentado a meu lado. Vestido com um casaco de malha igual ao do primeiro homem sentado no palco. Espreito e verifico que a ponta direita do casaco de malha do homem sentado a meu lado pende da mesma forma que o casaco de malha do primeiro homem sentado no palco. Com a mesma leveza pende do corpo magro. Estranho a coincidência. Procuro ver quem se senta além do homem sentado a meu lado. Dificilmente enxergo um outro homem com uma camisola de lã igual à do segundo homem sentado no palco. Tento ver como se encontra a gola da camisola de lã azul do homem sentado ao lado do homem que se encontra sentado a meu lado. Sim, está desajeitadamente dobrada, enrolada à semelhança do segundo homem sentado no palco. Estranho. Mais uma coincidência. Penso que o anormal seria não estranhar. Aperceber-me de tudo isto e apenas descrevê-lo seria desconcertante. Mas não consigo deixar de estranhar. E mais estranho ainda , quando verifico que o homem sentado na fila oposta à minha possui um casaco de malha bege igual ao do primeiro homem sentado no palco. Com uma ponta que pende para fora da cadeira da mesma forma que o primeiro homem sentado do palco. Visualizo a ponta do casaco e tenho vontade de lhe tocar. De sentir a malha da ponta que pende do casaco do homem sentado na fila a meu lado. Ergo-me e devagarinho dou dois passos ao encontro do homem da fila a meu lado. Espero que ele me olhe. Mas o homem sentado na fila ao lado daquela onde eu estava sentada mantém o seu olhar firme no palco. Olhando os dois homens sentados lado a lado. Olhando na sua frente. Sem sequer se aperceber da minha presença. De um corpo, o meu, a seu lado. Baixo-me e de cócoras toco na ponta do casaco de lã bege do homem sentado de lado na minha frente. Sinto-lhe a maciez. As malhas. O cheiro da roupa de Inverno e do vento. Agarro na ponta do casaco do homem sentado e levantando-a coloco-a sobre o seu joelho.

Estou sentada no palco. Olho no publico sentado na minha frente. A minha cadeira range.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Água


Paula Rosa - Meta For

- Falta-me algo...
Não sei o que te diga. Silencio-me.

- Falta-me algo.
Interrogo-me.

- Falta algo...
Sim. Eu sei.

- Algo que...
Que não sabes. Que não sabemos. Saberá alguém? Esta insatisfação presa aos cabelos que despenteamos para sentirmos a vida. Como se a vida se pudesse desgrenhar e mover com o vento. Como se a velocidade fosse condição à vida. E o sentir tivesse de ser constante. Às pernas só é dada a condição de movimento. E do repouso tem-se medo.

- Sinto que...
O afecto nos faz falta. Mas nunca nos bastamos com ele. O amor nos preenche, mas deixa sempre espaço vazio. Os filhos crescem. Os pais morrem. Os amigos zangam-se e esmorecem. As fodas são somente fodas. E as namoradas perdem-se entre o trabalho e os copos.

- Há algo que...
... gostarias de fazer. Mas o quê? O que falta? Faz-se tudo sem saber. Faz-se nada. Inicia-se sem dúvidas e no final em gargalhada a questão o que estou eu a fazer? Bebe-se um copo. Embebeda-se a mente. Fuma-se drogas, embala-se o corpo. Mas que raio...

- Falta-me algo.
Procura deus. Deus é pequeno. Deus não enche quem não o quer. Aliena-te como te for possível. Eu... eu não te sei responder.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Lavanda


Veloso - Tentação da carne

Eu conto-te. Conto para que saibas. Ainda que nada haja a conhecer. Uma circunferência. Um ciclo iniciado após uma volta. Conto-te. Existia uma insatisfação que lhe corroía os ossos. O abrir a porta de madeira da casa. Aquela mancha junto à fechadura da porta. Esperava-o. Confrontava-o. Com a noite. A noite passada dentro das paredes encerradas por aquela porta de madeira. Um beijo nos lábios. Um sorriso. Ou um caminhar para lá. Para longe do corpo dele. Distraidamente sempre para longe. Porque há sempre coisas a fazer. A ajeitar. A arrumar. A delinear. A projectar. Dois corpos que se movimentam num mesmo espaço. Com pequenos. Leves. Breves toques. Uma mesa e quatro cadeiras. Duas cadeiras ocupadas. E o silêncio. O silêncio mesmo quando não existia silêncio. Um olhar na toalha branca. Imaculada porque se quer imaculada. Diz. Sim. Diz-me como te correu o dia. Quem? Sim. Fala-me do teu dia. O meu? O meu... Sorrisos. Breves. Um beijo de fugida. A loiça. O sofá. Pousa a cabeça no seu ombro. Mais um beijo. E dois corpos sentados lado a lado. Ele loiro. Ela morena. Distantes. Distantes pelo enjoo. Pelos dias e dias de toques. Pelos dias e dias de proximidade. Poderiam ser interrompidos com choros. E bebés. Mas não. Apenas o silêncio do noticiário da televisão. E um nevoeiro pairando sobre o que já não era.

Rompe-se a corrente.

Ela era vento. Era chuva. Era Inverno. Era fogo. Era mar. Ela era riso. E sorriso. E viver. Era ruiva. E morena. Era o sofá desarrumado. E o pavimento sujo. Era migalhas na cama. E manhãs atribuladas. Era fugida. E desassossego. Era vertigem. E suor. Era televisão desligada. Era música em silêncio. Um gemido. Um olhar. A cumplicidade. Era ele. E era ela. Eram outros. Que se passeavam por ela. Era ciúme. Era medo. Prazer. E prazer. E amor descomplicado. E amor porque te quero. Amor porque sim. E sim. É assim. Amo-te. Amo-te. É desejo. Que não quero perder. E saturar.

Corrente inexistente.

Hoje ele senta-se no sofá. Os dois loiros. Em frente ao noticiário. De cabeça contra o ombro. E um sorriso. No sofá branco. Depois do jantar na mesa com toalha vermelha. Imaculada. Depois do beijo de fugida. E dos dias. Do Conta-me como foi. Sim? O meu? Nada de especial. Quem? Ah ela. Ah ele. Sim. Sim. Temos de ir. E fazer. Sim, tens razão. Tenho sono, vou deitar-me. Tudo bem. Não te preocupes. Ele chora. Eu vou lá. Sim. E no rosto a segurança de sabermos qual a nossa infelicidade. E nas mãos as referências apreendidas e aprendidas. No cabelo o sabor de quem provou. Na boca a esperança de um dia voltar a ser. Um retorno.

Nada. Nada. Nada mais a acrescentar. Conto-te. Contei-te. Parte.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

sopas dispersas


Charles Gatewood

A minha pele está transparente. Aguarda. Aguarda-te. Dos meus intestinos o mundo quer expulsar-me. Eu comigo dentro. Corro. Sinto o odor do teu cheiro. Intenso. Dou-te uma mão e aguardo que a música comece. Os meus pés dançam parados. E toda a música é absorvida pelo meu corpo. Danço-te. Na sombra. O meu apetite não matarás. Ele vive do alimento e nunca através dele surgirá o seu desaparecimento. Sou uma marioneta. Nas mãos de quem me quiser. Nas tuas. Ou nas dele. Movimentem. Movimentem-me. Da minha boca apenas silêncio e este sorriso. Subo ao palco empurrada por ti. Sento-me. Deito-me e durmo. Empurras-me com um pé. Rio. Poderia gritar mas aprendi a ser domada. E dominada. E submetida. E imobilizada. Revolve-me a pele. E a carne. O restante revolvo eu. A essência. Que te dou e retiro.

Ela quer que eu aponte. Baixo o dedo. Baixo a mão. Baixo o braço. Acontece. Digo-lhe. Acontece. Ela implora-me para que aponte. Baixo o dedo. Baixo a mão. Baixo o braço. Roga para que uma palavra seja dita. Expulsemos os nossos demónios através dos outros. Através dos demónios dos outros. Olho-a. Mas a minha natureza é de entendimento. Penso em contar-lhe que um dia abandonei tudo. Retirei-me da vida e dormi. A minha pele virou cinzenta e as minhas ancas largas encolheram. Os espelhos deixaram de me reflectir e não havia como chorar. Contar-lhe que o meu pai delira e se ira contra mim.

Vou despir-me. E vestir-me. Tenho vontade de ser actriz. Enfiar o corpo num vestido coleante preto e escorregadio. Enfiar nos pés os sapatos pretos mais altos que tenho. Ser grande em altura. Prender os seios um contra o outro de forma a que visualize o rego olhando na frente. Colar o cabelo à cabeça e colocar a peruca morena comprida. Sombrear os olhos de negro e prata. Esticar as pestanas ao infinito. Dar cor vermelha às faces. Matar-te porque me desejas e eu nada posso fazer a não ser esvair-te em sangue e suor.

Existe uma tesão em mim. Esta tesão que me faz andar. E caminhar. E deitar-me numa marquesa. Existe tesão em mim. Sentes? Sinto.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Chuva de lava


Ludmila - Couple

A porta de vidro estava fechada. Premiu o botão da campainha. Os cabelos caiam sobre os olhos dificultando a visão mas teve preguiça de os retirar. Click.
- Quem é?
- Sou a 77479077. Estive cá o mês passado. Simulei um enforca-mento. Agora queria...
- Só um momento.
A porta divide-se em duas que recolhem deslizando para os lados. Entra. A sala de cor metálica prata está escura e dificilmente vê o balcão onde anteriormente fora atendida. Era uma tarde de Sexta. Saíra do trabalho mais cedo. Faltara novamente a corrente eléctrica. Um novo atentado. Mais de cem feridos. Estilhaçados pelas pedras do buraco que os protegia.
A sala ilumina-se e uma mulher de casaco de fazenda castanho entra na sala por uma porta atrás do balcão.
- Hoje fechámos mais cedo. As festas começam amanhã...
- Sim...
- ... Não é época para se querer morrer. Todos estão eufóricos - diz sorrindo.
- Não será, responde torcendo os dedos na camisa.
- Mas que pretende? Não tenho ninguém neste momento que possa atendê-la.
Hesita. Não é época para se querer morrer. Existe outra mais indicada?
- Eu pretendo simular o choque frontal...
- Não pode voltar para a semana?
- ... mas não o condicionado. Quero um real.
- Como real?
- Não pretendo o vosso cenário. A garagem. O condicionamento. A experiência em ambiente fechado. Quero lá fora. Na estrada.
- Mas sabe que é ilegal?
- Sei. Mas disseram-me...
- O que lhe disseram? Aqui só fazemos simulações legais. Estamos registados e certificados.
- Sim... mas pensei que pudessem. Só esta vez.
- Mas... já viu o nosso catálogo?
- Sim. Já sou vossa cliente há uns meses. Como lhe disse o mês passado simulei o enforcamento...
- E não gostou?
- Gostei. Muito, mesmo. Mas quero... preciso... sinto que... pensei em fazer algo diferente.
- Mas tem outras... experiências. Como lhe disse o nosso...
- Eu sei. Já simulei afogamento... a pira... a tortura de Santa Ágata, a de Santa Luzia, e ainda que através de uma outra agência... a overdose e o ataque cardíaco... tenho gostado muito de todos os simulacros, mas ouvi falar no choque frontal real e senti-me seduzida.
- Olhe. Peço-lhe. Volte para a semana. Falaremos melhor e de certeza que conseguiremos arranjar-lhe uma experiência de morte que a agrade. Certo?
- Certo...

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Casablanca


Albano Ruela - Ente

O enterrador estava pronto. Tinha escolhido um local em que sabia que dificilmente seria incomodada. A maioria dos que utilizavam o processo solitário fazia-o em locais bonitos. Praias, montes verdejantes, pequenos paraísos de cor e luz. Não uma fábrica velha junto a uma pedreira abandonada onde imperavam os cinzas e a rocha nua espreitava em tons escuros num monte dilacerado a picaretas. Não tomaria o comprimido. Tinha-se decidido a sentir. Sempre a sentir. O solitário não lhe seria indolor mas sentiria algo. E o último pensamento seria dele. A ele dirigido. Quando a terra batesse sobre ela fortemente. Quando o seu corpo recebesse o impacto daqueles quilos de terra seria nele que pensaria. Nele que não a amara. Nele que não a quisera. Nem a ela, nem ao seu amor. Sufocaria lentamente? Não sabia. Não procurara informar-se. Chamar-lhe-iam de doida caso explicasse o que pretendia fazer. Não existia relatos de quem não tivesse tomado o comprimido. Não existiriam relatos de nada. Quem experimentava o enterrador não ficava para relatar. Daí não se preocupar em saber como se programava o enterrador. Seria manualmente que o faria. Bastava-lhe puxar a alavanca com o cordel que trouxera para o propósito. Cavar um buraco onde deitar o corpo. Colocar a terra do buraco sobre a plataforma do enterrador. Deitar-se no buraco. Concentrar-se no céu escuro. Puxar o cordel. E cairia a noite. Para sempre. Sempre. Questionava-se. Existiria espaço à tosse? A convulsões? Ser enterrada viva. Sentir-se a morrer. A sufocar. Espaço a gritos? A arrependimento? Desde que os pais lhe tinham morrido não existia motivo para se deixar ficar. Os entusiasmos não morriam. Apenas tinham deixado de se fazer sentir. Era um zombie. E na cabeça apenas uma morada. A morada dele. Dele. Seguira-o. Visualizara-o de longe. Sonhara em que ele voltaria e lhe diria que a amava. Que a queria. Que não conseguia viver mais sem ela. Que a desejava como ela a ele. Muito. Tanto. Tanto... uma história de amor de tirar o fôlego. De romper com o mundo e tudo o que nele conste e se conheça. Querera tanto que ele fosse louco por ela. Que obcecasse por ela. Que a quisesse acima de tudo. De qualquer forma de ser. De tudo e de todos. Um amor de enjoar. De novela. De conto e de história. Mas não. O enterrador estava ali. Pronto para carregar com a terra. A terra a depositar no buraco. A retornar ao local de origem. Cavar a própria sepultura. Morrer e ser enterrado onde queremos. Um direito difícil de adquirir mas conseguido ao final de muitos anos de lutas. E a ela a quem nunca interessaram as lutas, usufruía agora desse direito. Punha-lo em prática. Começa a cavar. O sol esconde-se por detrás do monte violado. As mãos pequenas posicionam-se ridiculamente sobre a pá. Não tem pressa. Poderá descansar sempre que queira. Não há mais pressa. Após a decisão tudo é pacífico. Existe uma serenidade no corpo que há muito não sente. Deixou de transpirar de ansiedade. Deixou de se interrogar o que fazer. Simples. Paz. Não há orgasmo que lhe valha. Nem coito que deseje. Nada. Não há fome. Não há sede. Nada. Vácuo. Um negro de luz. Retoma o trabalho. O processo é lento. Ainda que tenha escolhido o melhor local este encontra-se repleto de pequenas pedras. Restos da mãe rocha. Anoitece. Decide parar. Não sopra uma brisa. O vento nega-se a fazer sentir. Nada se faz sentir. Nem o luar. Somente as estrelas presenciam aquele corpo coberto de pó. Deita-se sobre o pequeno monte de terra já retirado. Sobre a plataforma do enterrador. Dormir sobre a própria campa. Sobre o coveiro da campa. Adormece. Em sonhos ele. Sempre ele. Maldito. Amo-te. Amo-te. Porque não me amas? Porque não me amas se eu amo-te tanto? Deverias amar-me. Deverias achar-me especial. Deverias sentir-te privilegiado. Deverias... Porque não me amas se eu te quis amar. E consegui. Amo-te. Porque não me amas se me mostrei. E revelei. E... amo-te. Vomito-me de amor por ti. Sente-me. Amanhece. Lentamente. Tão lentamente que parecem dias. Dias sem noites. Somente um sol nascente. Eterno. Ali. Pairando baixo no horizonte. Agarra na pá e prossegue. Que horas serão? Não sabe. Com ela apenas o seu corpo e o vestido imundo que traz colado aos seios e às pernas. Não escreveu nenhuma carta de despedida. Não avisou ninguém. Será um solitário não registado. Mais uns dos que agora começam a serem descobertos em grande número. Mais um que calou o destino. Mais um. O solo ergue-se. Finalmente ergue-se e queima. A pele morena tinje-se de suor. Termina o buraco. Ou pensa que o termina até se deitar nele e constar que não existe espaço para o corpo. Só de lado. Pensa em retomar. Ri-se. E porque tem de ser de costas? Porque não podemos enterrar os mortos de lado? Porque não pode ser ela enterrada de lado? Que de lado fique. É importante? Afinal... é especial. Ri-se. A gargalhada ecoa na parede da montanha dilacerada. Sente-se feliz. Ou o mais próximo que conhece da felicidade nos últimos tempos. Ata o cordão à alavanca. Entra no buraco e deita-se. Magoa-se no braço esquerdo que bate numa pedra. Não faz mal. Que importância tem a dor naquele momento? Não pensa. Não pondera. Nada a pensar. Não existe espaço para um último momento. Para uma última reflexão. Para um momento de silêncio. Para compadecimento de si mesma. Puxa o cordão. A plataforma ergue-se. Devagar. Mais lentamente do que previra. Eleva-se a cerca de um metro e meio, gira sobre si mesma e a terra é atirada com força sobre o buraco. As medições foram bem feitas. Ainda que a olho. Ainda que sem grande método. Sente o impacto da terra sobre o corpo. O cheiro do pó. O escuro. Estranhamente não se arrepia. Não se engasga. Não sufoca. Somente escuro. Um escuro terrível. Um escuro e um cheiro a terra intensos. Estranho. Não morre. Não sente a vida a esvair-se. Não sente nada a não ser um imenso escuro e um imenso cheiro a terra. Aguarda. Quanto tempo passa? Quanto? Já deveria ter sufocado. O corpo não sente o peso da terra. Estranho. Sente-se envolvida. Quase que poderia afirmar, deliciosamente envolvida. Nada. Aguarda. Ri-se. Sim. Consegue rir-se. Vem-lhe à mente a imagem do seu egocentrismo. Especial. O querer ser especial. Para alguém. Para ele. Pois seja. É-o. Não morre. Porque não morre? Grita. Quer morrer. Porque não morre? Quer sufocar. Não há direito. Não é justo. Ela só queria calar a mente. Só se queria calar. Só queria morrer sentindo. Sente. Mas não morre. Apenas o escuro e o cheiro forte a terra lhe fazem companhia. Nem a pedra sob o braço esquerdo faz notar a sua presença.