sexta-feira, 31 de julho de 2009

santa catarina


Manuel Alvarez Bravo

Olho nelas. A morte aproxima-se. Elas riem. Inventam disparates para rir. Para nunca estarem sozinhas. Para que a gargalhada aqueça a vida da outra. Olho nelas. A natureza delas. Mãe e filha. À deriva. Porque a notícia da morte nos põe náufragos. Porque não é fácil aceitar que quem é hoje não será será amanhã. Porque ele ali está. Amarelo. Amarelo auto-bronzeado. Amarelo Algarve. Com máscara. Na ignorância. Será que sabe? Será que calcula? Que pensará? Que pensaremos nós perto da ida? Sentiremos a inutilidade de tudo? Os soluços e os nós na garganta? Saberá que as duas o olham pela última vez? Sempre pela última vez. Ainda que neguem. Que o neguem. Sermos devorados vivos. Existe canibalismo na doença. E os hospitais testemunham. Daí o seu peso. A sua cor cinzenta, amarelada. Olho nelas. E vejo-me na impossibilidade de fazer mais que não olhar. Que não estar. Faço palavras cruzadas. Panelas. Dialecto provençal. Afirmativa. Final.

Eu devo ter um cheiro igual ao de alguns animais. Semelhante a alguns animais. Um cheiro forte. Pestilento. Colado à pele. Colado à carne. Um cheiro que não é humano suportar. Um cheiro enjoativo. Nojento. Intenso. Que se arrasta a cada passo. Que não se faz sentir inicialmente. Que descansa no inícios. Para que estes existam. Para que haja um ponto de partida. Mas que a uma dada altura se liberta. E expande. E fortalece. E tudo e todos desaparecem. Fogem. Sem uma palavra. Sem um beijo. Sem um aperto de mão. Sem um olhar. Sem um adeus. Sem um nada. Nada. Nada. Terei de me lavar? De me esfregar com o detergente da loiça? De me escamar? De me pelar? Não sei. Não sei porque não o sinto. O meu cheiro assustador. De pessoas. De homens. De amantes. Vomitam-se. Pois vomitem-se. E tenham náuseas. E sintam-se prestes a parir. Engravidem. Na cabeça. Nas mamas. No corpo. E vomitem-se. Em saliva. Em bílis. Amarela. Cinza. Esbranquiçada. Rosa. Azul. Um arco-íris de entranhas. Bem feito. Bem feito. Sou gente. E mereço uma palavra. Sou gente. E nem sou gente convencional. Sou gente.

Tenho dificuldades em entender-te. Em entender o teu sentido de humor. Em perceber o que queres. E que procuras? Questionas. Respondes. Tens sonhos. De culpa. De imagens. Os meus falam em aceitação. E nos perigos de ser assim. Desconcertante. Homem desconcertante.

O miradouro estava cheio. Cores e coloridos. Vozes. Línguas estranhas em palavras gritadas. Penteados em cachos. Risos e fumos. Barcos ao fundo. E luzes. E pontes. Uma ali. Outra além. Os telhados que se acercam. E os olhos. Os olhos que doentes de tanta gente se fecham. Os corpos que se encostam. E eu vou lá. Espreito. Aproximo-me. Mas somente de manhã. Somente quando me desloco para cima. Para ver os restos. A porcaria. O lixo. E todo o absurdo humano. Todo o absurdo das noites de divertimento. Como quem quer esquecer a vida. Como quem bebe para não viver. O absurdo de destruirmos tudo o que tocamos. As garrafas. Os copos. E os ambientalistas. Os vegetarianos. Todos. Deixam o lixo ali no chão. Porque a noite é longa. E nós. Nós temos de nos divertir. E beber. E rir. E pago-te um copo. E tu a mim. E jantamos? Jantamos. Fazes tu o jantar. E quando menos esperares enfio-te o pano de cozinha na boca e fodo-te por trás. Assim. A seco.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

macramé


Alfred Stieglitz - Hands With Thimble

Anda meu amor. Vem comigo. Vamos passear de mão dada. Vamos subir e descer as escadas. Vamos ao museu do fado e almoçar em Alfama. Vamos à rua onde nasci. Anda. Traz-te. Traz-me. Vamos. Viajar vestidos de cegos. E de lagartos. Escorrer pelos calçadas. Transpirar no sé. E na fé. Subir ao Castelo. Fazer amor aqui e acolá. Vamos. Se puderes pagar o gás amanhã.

As minhas relações começam em Abril. E não chegam ao Natal. Não temos dinheiro para prendas e presentes. Mas não faz mal. Existe a Páscoa. E a ressurreição. Existo eu. Que me mantenho. Existe o mais importante. Estas mãos. E os olhos. Um pensar. E um sentir. Existo eu. Por agora. Para sempre. Conhecer-me na não existência. Conhecer-me não sendo. Andar descalça num parque infantil. Destruir os baloiços pelo uso. Ler as biografias do Stefan Zweig. Sim mãe. Sim mãe. As pessoas sempre foram importantes na minha vida. Sou como a Carolina. A necessitar de gente. E de faces a quem sorrir. Desde pequenina. Desde miudinha.

E é de manhã. E ontem era de noite. Para a semana falta pouco. E o tempo passa. E eu aqui. E tanta coisa. Para fazer. Para deixar de fazer. Para adiar. Para pensar. Um bebé chora. Quer colo. Oiço-o. E escrevo-o. Um bebé chora. Desencontros. E é neste fim-de-semana. Durmo no sofá. É neste fim-de-semana. E será verde. Como os olhos dela. E dele. É neste. Senhores a minha vida não dava um livro. Coisa pouca. Um livro que não tenho vontade de escrever. Está escrito. Senhoras perdoai-me mas eu não sou uma Margarida. Nem uma escritora. Apenas tenho esta necessidade compulsiva de palavras. E somente quando estou só. Somente quando não existe com quem partilhar. Somente quando me obrigo a contar. Somente quando não entendo. Nem compreendo. Eu sou de vida. De fazer. De ir. De cair. De me espalhar. E sujar. Sou de agir.

Mostrei-lhe as minhas mamas. Saquei-as pelo decote e expu-las. Ele corou. E eu corei nele. Toma estes caldos de mim. Uma sopa. Um rubor. Posso maquilhá-los. Como aos olhos. Para que se borrem. Para que tenha olheiras. Gosto de me ver borrada. E esporrada. Prender os movimentos, os sorrisos, as expressões através da esporra seca. Lavo a cara depois. No dia seguinte. Deixo-a cair na fronha. Na lembrança. Mas agora tenho de estender roupa. Depois. Depois vou procurar um poeta por quem me apaixonar. De barba. Para que a minha comichão não pare. Um poeta. De poemas presos nos dedos. E no meu corpo. De dedilhares em mim. De entradas no cérebro. E aceitação. É secreto. Como o clítoris.

Não existe cura. Não existe cura.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

são verdes


Ricardo Passos

Existe um cansaço que trago colado às costas. Um espetar de pregos. Um entorpecimento nas pernas. Uma maré baixa na testa. Existe um sabor a rumo ao desconhecido na minha boca. Um retomar. Um dirigir sem saber onde parar. Para comer. Parar. Para dormir. Parar. Para estar. Para ser. Uma tomada de decisão que não o é. Foi-o porque assim teve de ser. E existe uma noção a crescer. Que já existia. Mas cresce. E eu receio que cresça. Eu que sempre vivi intensamente. Que sempre me dediquei a tudo como da primeira vez. Sinto. Sinto algum cepticismo. Alguma desconfiança a mim mesma. Algum descrédito. Mas... talvez seja a altura do mês. Talvez seja o trabalho. Talvez sejas tu. Talvez... Talvez.

Minha querida. Como te adoro. Como adoro essa tua expressão de olhos dançantes. De boca semi-aberta, semi-fechada. De cara de menina mulher. De expressão pontuada e correcta. Como adoro esse teu olhar límpido. De água. De fonte. Olhar de oceano. Grande e profundo. Como tu. Minha querida. Que ingénua sou. Julgava-te "curada". Como se nos pudessemos curar. Como se o que fossemos fosse uma doença. Um cancro que nos consome. Mas não. Sofremos de um mal de sermos grandes. De queremos mais. E mais. De sermos crianças à descoberta. De desejarmos estar de joelhos. Não é mal. É essência. Não é doença. É querer. E nesse querer a insatifação. E a intensidade. Minha querida. Às vezes sento-me aqui a fumar cigarros. Fumo. Fumo e penso. E lembro. E oiço. E vejo. E a minha riqueza traz-me sozinha. Mas com sorriso. Minha querida. Tentei. Tenho tentado. Tenho tentado fortemente dar-me em afecto. Tenho tentado fortemente não me mandar dos declives. Mas aprendi a cair. A levantar-me. A voar. A planar. E agora... agora parece que ando viciada. Mas é só agora. Amanhã paro e penso que tenho de me converter às minhas caixas de madeira, às minhas caixas de cartão, às paredes de minha casa, a coser botões. Minha querida. Não sei o que te diga. Foi sempre o silêncio que nos envolveu. E ligou. Olhos meus nos teus. Olhos teus em mim. E um medo. Um medo que na primeira palavra, o teu olhar que é o meu, saiba na minha boca a confronto. Saiba a vinho verde. Ou maduro. Minha querida não esqueço o teu cheiro. A silêncio. A calmia turbulenta. Minha querida, amo-te e adoro-te.

Salto. Primeiro tu. Depois tu. Depois ele. E foi ele. E tu. E agora tu. Salto.

Vou fazer um desenho. Um desenho em que me ponho no meio. E à volta da folha branca desenho bolas. Bolas que se assemelham a pichas. Que se assemelham a conas. Que se assemelham a esporra. Que se assemelham a chicotes. Que se assemelham a olhos. Que se assemelham a cus. Que se assemelham a mãos. Que se assemelham a corpos. Que se assemelham a facas. Que se assemelham a mim. E no meio das bolas cruzes. Cruzes que se assemelham a amor. Que se assemelham a afectos. Que se assemelham a carícias. Que se assemelham a beijos. Que se assemelham a cumplicidade. Que se assemelham a mimos. Que se assemelham a paridade. Que se assemelham a mim. Desenho. E depois de concluído. Depois de pousar o lápis. Sento-me. Como deus. Sento-me. E não sabendo o que lhe fazer. Onde o por ou colocar. Expôr ou mostrar. Enrolo a folha na mão e mastigo-a. Vai saber a... vai saber-me a mim.

Absolutamente


Barbara Crane

Eu sento-me na mesa do canto. Aguardo por ti. Nas mãos um rosário de plástico brilhante. Vou rezando Pai Nossos. Ou serão Avé Marias? Não me perguntas. Não queres saber de nada a não ser olhar-me nas mãos. Ouves os meus lábios baixinho. Rezando. Orando. Estranhas. Estranhas que não estando lá, eu, esteja e te espere. Naquela mesa do canto. Espero que chegues. Que venhas. Que venhas ao meu encontro. Que te sentes na cadeira a meu lado. A que me pedem para levar. E eu deixo. Dar-te-ei a minha e ponho-me de quatro debaixo da mesa. Para te ver debaixo. Porque debaixo há sempre magia. Para que possas abrir as pernas comigo a fazer de sela. Debaixo. E de cima. Teme. Teme porque um dia levanto-me. Teme sem medo. Mas teme. Excita-te. Vou possuir-te.

As escadas de pedra tinham dez degraus. Creio que eram dez. Ou onze. Um aqui. Outro ali, outro acolá. Gastos, lisos, brilhantes. No Inverno alguns faziam pequenas poças. E sempre o medo. O medo de cair. O medo da vertigem daquele precipício. O medo de escorregar. De cair com os dedos sujos de massa de pão. Ai. Dá-me a mão. Subia. Um a um. Pé num. Pé no mesmo. Devagar. Os degraus serpenteavam a fachada da casa. E no topo alguidares vermelhos cheios de farinha. Posso? Empastava a boca da massa amarga a saber a campo. A Ti Casimira sorria-me. Sempre velha. Sempre igual. Come gaiata. Come. Azeda no estômago. O quente que está. A brasa no meu rosto. Obrigado Tia. Posso comer mais um bocadinho? Enfiar o dedo nesta massa amarelada e espessa e lambuzar a boca. Esconder os dedos sujos. Limpá-los nas calças. Obrigado. É amarga. E vira e revira o pão no forno. E a arte de trabalhar com a pá. De puxar e empurrar o pão no forno. Um dia também quero. Agarrar-me a esse pau e revirar o que estiver na sua ponta.

Vamos. O tanque está sujo. Vamos tomar banho com os limos e as canas. Vamos.
Ela atirou-se de barriga. Ponho um pé. Ela arrasta-se de costas. Ponho um pé. Empurro umas canas que flutuam. A minha mãe diz que tu és meio parvinha. És? Mas gosto de ti. Como gostei da Maria. Engravidaste aos treze. E tiveste de ser mãe quando nunca foste filha. Conheceste os prazeres da carne quando eu ainda me perdia pela boca com mãos nas ervilhas mamas. Eras tonta. Tu com o nome igual ao da minha irmã que não te falava. Por seres assim tontinha. Fascínio. Desejo por ti. Nos teus caracóis loiros. Sujos. O comeres a erva dos coelhos. O riso. Esse riso dos pobres de espírito. Poderoso. Deves ter dado o teu corpo com a mesma passividade com que entravas no tanque de água suja. Eras tonta. Mas eu entrei também. Queria ser tonta. Como tu. Afinal o teu sorriso era uma manhã de Sábado. Era o pátio do recreio. E pinhões já sem casca. Tonta. Tonta tu e tonta eu. Lembro-me de sentar no degrau junto à cruz e olhar-te. Uma matulona brincando com miúdos. Linda. Mulher. Rapariga. Mamas grandes. Corpo formado. Brincadeiras de apanhada. E os risos. Que risos. Uma força. Um íman. Mãe quando for grande quero ser assim. Tonta. Livre. Existe um cheiro a liberdade em quem corre assim.

Que fumas? Fumo tabaco. Eu JPS.
E tudo tem um simbolismo. Esta imagem. As tuas mulheres. E as minhas. Tenho algumas. Converto-as em palavras. As minhas mulheres. São do campo. E da cidade. Dos arrabaldes. Daqui e dali. Em comum têm... têm-me a mim. Porque eu vou. E dou. E recebo. E tiro. Roubo. E arranco. Sorrio. E rio. Apalpo. Deixo-me ir. Sou tomada e engulo. As minhas são fracas. Daí a sua força. Por sabê-las fracas. Por sabê-las potentes. Porque há muito que não se sentam. E eu ponho-as no meu colo. Ou corro de mão dada. E ambos sabemos que não são minhas. Mas chamemo-lhes assim.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Milagre


João Carita - Lost my job because i am pregnant

Ele queria que eu lhe lesse. Um livro. Um livro dos meus. Dos que leio. E folheio. E pouso. E revolvo. Na mente. Na boca. Nas mãos. De encontro ao meu corpo. E cheiro. E lambo. E esfrego. De encontro ao meu corpo. Mas nunca o fiz. Foi breve. Tudo é breve. Comigo. Breve. Um soluço. Um pousar de abelha. Um já foi. Um já não é. Eu que quero. Que desejo. Que me estimulo. Que me quero dar. Tudo breve. Em mim. Em ti. Foi. Fui. Foste.

As minhas noites têm o dobro das horas dos dias. E os dias tem horas que não conto. Estou aqui mas podia estar aí. A teu lado. Ao ao lado de alguém que pousasse a cabeça entre as minhas pernas. Porque só pousa a cabeça quem quer e ama. Um ninho. O meu ninho. Faltam-lhe os ovos. O Inverno chegou. A aves migraram e eu fiquei aqui prostrada à tua espera. Ou à minha. Eu a que sempre escolhe. Em segredo. Escolhi-te. Sentes? Tal como escolhi os anteriores. É. Sou assim. Uma predadora. Uma caçadora. Mas não temas. Dou na proporção em que roubo. Sim. E há quem se contente com nada. Nada de nada. Há quem prefira rastejar a voar. Há quem se contente com pouco. Com nada. Há quem não tenha a coragem. Há quem se refugie. Pobres...

Escorreguei pela parede. Do tecto caíam gotas de vinho tinto. Batiam no chão e sujavam-me os pés descalços. A fazer lembrar o sangue que me secou nas veias. Escorrego. Sento. Sinto o frio do chão. Aponto para fora. Aponto para dentro. Somos todos uma cambada de egoístas. E egocêntricos. Vou encher-te o ego. Dizer-te coisas bonitas. Sussurrar-te o meu desejo. Detalhá-lo. Excitar-te tanto que ficarás dependente das minhas palavras. Que me procurarás para te preencheres. Que necessitarás de mim, das minhas palavras para sobreviveres. Para te sentires especial. Sentes? Sente. Sentes? Sente. Ainda que tudo o que eu digo seja... sentido. Ou foi. Sim, fui intensa. Demasiado intensa. Sim, comi-te, devorei-te. E agora resta-me esta azia agarrada aos ossos. Eu, a comilona. A devoradora. A insaciável. Traguei o mundo comigo nele. Um buraco negro.

Não me olhes. Eu sou assim. Volátil. Átomos. Perdoa-me.

Eu enviava-lhe mensagens dizendo-lhe o que pretendia. O que queria jantar. Como o queria vestido. Como ele devia estar posicionado quando ouvisse a chave na porta. Ofereci-lhe umas botas de mulher. Para que caminhasse de uma forma feminina. E um avental, para que se assemelhasse à Isabel, que nunca o usou. Depois. Depois ganhei-lhe amor. Afecto. E fui-o despindo. Tirei-lhe as botas e senti-lhe os pés masculinos. Despi-lhe o fato de criada e senti-lhe os músculos contraídos. De desejo. Por mim. Da ideia que tinha dos meus cabelos sobre o seu sexo. Enquanto o mamava. Perdia-me a mamá-lo. E perdia o meu sexo na sua boca. Oh gemo. Gemo. Eu que sempre quis ter dentes na cona. Para morder. Rasgar. Deixar em mim preenchido este buraco volumoso, profundo, escuro. Eu que consigo engolir, tragar, devorar pela cona. Não são obscenidades. São sentimentos. Vou engolir-te. Vais desaparecer. E eu vou ficar aqui gorda. Cheia. Obesa. Volumosa. Contigo dentro. Com dificuldade em andar. Em mover-me. Arranjarei quatro homens para que me levem deitada sobre a cama. E todos dirão Lá vai ela. Lá vai ela. A puta. A engolidora. A exacerbada. A doente. A comilona.

Estou em dieta. Ironia. E tenho falta de dentes. Ironia.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Uma valsa


Nadar

Acorda. Acorda. Acordo. Ensonada dirijo-me para a roda. E começo a andar. Faço movimentar a roda. Devagar ela começa a rodar. Esta roda de parafusos enferrujados e falta de óleo. Caminho. Sem sair do mesmo sítio visualizo uma parede castanha diante dos meus olhos. O meu horizonte é uma parede castanha. Penso em embelezar a parede castanha. Dar-lhe um tom pimenta, ou rosa choque. Imagino. Em soluços a parede vira rosa. Vermelho. Laranja. Mas nunca rosa choque. Desisto e coloco-a da cor castanha. Reconstruo. Imagino que é da cor castanha que a quero. Que sempre sonhei ter na minha frente uma parede castanha. A roda acelera. As minhas pernas ganham um ritmo mais vibrante. Eu, a roda e a parede castanha. Uma roda roda comigo em cima. Uma roda de ratos. Uma roda de humanos. Uma roda estúpida.

Tenho uma história para fazer. Duas. Ou três. Creio que são várias mas é cedo e eu tenho todas as canecas vermelhas por lavar.

- Viste-a?
- Sim. Passou aqui. Trazia um vestido preto.
- Disseste-lhe?
- O quê?
- Que a amavas?
- Sim, disse. Enquanto lhe abotoava a presilha do sapato.
- E ela?
- Ela suspirou. Correu e saltou para o eléctrico. Via-a despaarecer pendurada na porta traseira do eléctrico.

Por vezes. Somente por vezes. Às vezes. Nestas manhãs. Nestas madrugadas. Olho em mim. Olho nas pessoas. Olho em todos nós. E sinto. Sinto que somos formigas. Que andamos todos de olhar no chão. Que por vezes cruzamo-nos. Que nos tocamos. Que movimentamos ligeiramente o pescoço de forma a vermos o que nos tocou. Que preguiçosamente. Que indiferemente olhamos. Olhamos em frente. Ou de lado. Que esboçamos timidamente um gesto para verificar de onde vem o que sentimos. E... e depois. Depois. Seguimos. Seguimos em frente. Recolocamos os olhos no chão. Ou na barriga. E seguimos. E tudo isto é solitário. Tudo isto é silêncio. Tudo isto é vazio. Tudo isto é falta de gente. Tudo isto é egoísta. Tudo isto é medo. Tudo isto é falta de coragem. Tudo isto é não esperança.

Jogos. Casinhas. O jogo das compras. Da paixão. A mim sempre foi fácil cumprir papéis. Ou não. Adapto-me facilmente. Sou cumpridora. E dedicada. Esforço-me. Levanto-me cedo. Dou-me. Entrego-me. E. E cobro. Cobro na mesma moeda. Cobro a mesma dedicação. A mesma entrega. O mesmo esforço. E. E rapidamente sinto-me insatisfeita. Mas é mais fácil saber o que me é pedido que o de ter de agir espontaneamente. Ter de ser eu. E quem sou eu? Não é importante. Importante é tomar banho, vestir-me e estar a horas no local marcado. Isso é importante. Importante é ter café na caneca. E rodelas de chouriço no caldo verde. E um couto de vela para as noites de Inverno. Isso é importante. Mas é isto. É isto. O importante é isto.
Só. Raramente me sinto só. Mas esta manhã. Agora. Neste momento. Sinto-me só. E não é solidão. É só. Só o quê? Só. Só isto. É isto? Só isto...

domingo, 26 de julho de 2009

manga na cara olhos em ti


Eugene Atget

Há algo que está terminando. Algo em mim que está fechado portas. E janelas. Vem aí vento. Ou o Inverno. E fecho-me. Fecho as portas de minha casa. Encerro as portadas. Mudo-me de casa. Tapo os móveis com lençóis. Brancos. Alguns de linho. Outros de algodão. Engomados. Não são meus. Há algo que eu sinto. Sinto. Sinto que vou encerrar um ciclo. Que vou terminar algo. Só agora começo a vestir-me de preto. Só agora. Depois do esgotar uma procura muito minha. Depois de rodar em busca da minha própria cauda. Feita cadela. Encerro. Talvez deixe de escrever. Talvez deixe de pensar nele. Talvez me sinta triste. Ou alegre. Mas algo vai mudar. Sinto-o, nos poros da minha pele. Sinto-o no meu olhar quando me reflicto num espelho. Sinto na minha casa. Sinto na forma como espero os amigos. Sinto na forma como converso. Como falo de mim. Como falo do meu passado. Como oralizo o meu presente. Algo vai mudar. É. Vai. O quê? Ainda não sei. Não sei. Mas vai. Conheço-me. Sinto-me. Talvez deixe de escrever sobre sexo. E escreva histórias infantis. Ou romances cor-de-rosa. Ou novelas pornográficas. Ou não sei. Talvez mude as paredes da sala para verde. Ou laranja. Ou roxo. Não sei. Mas sei que não serão somente paredes. Sei que derrubarei. Que vou destruir. Que vou mandar abaixo. Que vai existir entulho. Que terei de chamar a Câmara. Sinto. Talvez deixe de ter dois e-mails. Talvez mande fora o vestidinho preto sujo de tinta e rasgado. Tão meu. Tão cheio de vida. Talvez deixe de olhar as fotos dele. De o procurar. De o ler. Talvez o meu amante deixe de o ser. Talvez ele se apaixone por uma mulher. Por uma outra que não eu. Talvez fique sozinha. Sem corpos onde me enrolar. Sem jantares sem roupa. Ou talvez continuemos. E nos demos. E nos demos mais ainda. Talvez eu consiga mandar abaixo estas paredes. E dormir mais horas. Escrever. Escrever. Talvez vá aprender a dançar salsa. E bolero. E rumbas. E vá para um ginásio. E corra de manhã antes de trabalhar. Deixe de fumar. Vá para um convento. E me dedique à horta. A plantar nabos, cenouras e couves. Cebolas, alhos e salsa. Talvez corra com ele da minha cabeça. Talvez... e ainda que gostasse que a disponibilidade emocional dele fosse compatível com a minha sinto que não é isso que acontecerá. Ele tem asas. Pois que voe. Voa. Não tas posso cortar, e ainda que pudesse não quereria. Voa. Que eu aqui me quedo. Talvez eu escreva uma última carta de amor. Talvez eu termine estas lágrimas. Com estas lágrimas. E talvez eu chore pela minha governanta. Talvez me perdoe. Talvez procure o seu perdão. Talvez eu deite as lágrimas que ainda não deitei. Talvez eu consiga explicar-lhe que tudo valeu a pena. Que valeu a pena. Que ele vale a pena. Que nós valemos a pena. Que o adoro. Que mantenho a minha admiração por ele. Que... se eu fosse diferente. Mas não sou. Sou o que sou. Este material em combustão. Sim. Há algo que vai mudar. Há algo que está em mudança em mim. Existe um sentimento de perca. Transformamo-nos. E essa mudança traz-nos a angústia da perda. Perde-se sempre. Para se ganhar. Na mudança. Talvez me apaixone por uma mulher e mude de sexo. Talvez olhe em mim e veja um membro pendurado e grosso. Talvez ria quando me masturbar. Talvez chore quando olhar na minha rua. Talvez eu encontre o amor. Ou aceite esta minha forma de ser. Sempre à procura. Sempre a querer. Talvez eu... aceite e sorria ao recordar. Sim, há algo que está mudando. Há algo que está terminando. Sinto-o. Já consigo ouvir outras músicas...

sábado, 25 de julho de 2009

temperatura


Manuel Alvarez Bravo

Ele fugiu. Trocou de botas com ela no meio da ceara e fugiu. Numa marcha rápida por campos e milharais. Lembro-me que quando ele fugiu eu senti. Senti que se passava algo. Quando ele vinha ao meu encontro eu sentia-o. Tal como senti a sua dor pela mãe. As forças fortes dos laços. Quando pressionados ambos os lados sentem. Porque para se dar um nó são precisos dois lados. Duas forças contrárias.

Sonhei que me desarrumavam a casa à procura de algo. Enquanto eu dormia. Acordei e tinha no chão da cozinha parafusos, papéis, ferramentas, roupa, loiça, uma imensidade de objectos. Eu dormia. E quando acordei perguntaram-me se eu tinha facturas referentes ao trabalho que estou a fazer. Assim. Sem ter tomado ainda café.

Ontem torturaram-me pela boca. Duas mulheres deitadas, inclinadas sobre a minha boca aberta. Perfuravam, raspavam, limavam, roíam. Poliram-me os dentes e eu pensei em prata. Pensei em tortura. Pensei em ficção científica. Pensei que elas eram sádicas e eu uma vítima. Hora e meia em tortura. Para depois me enfiarem agulhas. Mais abaixo. Espetarem-me agulhas e deixarem-me dormir. Roncar de barriga para cima. Lembrei-me dele.

Acredito que a Laura Diogo não tenha sido rasgada pelo Ronaldo, ou Reinaldo. Acredito que tenham apenas fodido. Que ele não a tenha rasgado. Ainda que todos nós preferíssemos a existência da agulha e da linha.

Vou à praça. Vomitar-me com os cheiros da praça. Junto às bancas do peixe fresco. Olhando os mendigos de mãos sujas e castanhas. Depois olho-lhes para os pés. Vou sentir qualquer coisa que não esta manhã. Sono. Café. Cigarros. Sumo de laranja. Cadernos. Dedos. Banho. Panos húmidos.

Estou a tentar escrever. Talvez consiga.

Tento.

Um dia ela tentou a morte. Creio que não a desejava. Queria uma festa. Um olhar. Um olhar sobre ela. Um toque de pele. Eu espreitava por detrás da porta. Creio que inicialmente não entendi. Mas chorava. Como choram as crianças quando sentem. Quando pressentem. Choram porque vêem a azáfama. Vêem o choro. Vêem lágrimas. Que seria de mim? De nós? Que teria acontecido se a morte tivesse chegado naquele dia. Naquela tarde? Eu que nunca pensei em matar-me. Podia antes partir uma perna. A bacia. Ter uma doença. Mas a morte? Essa coisa definitiva. Sem retorno. Sem volta. Desconhecida. Só simulação. Pelo chicote. Pela anulação. Pela dor. Pelo caminhar de joelhos. Pela força. Pelo amor. Sentir a morte pela entrega. Mas duas pessoas nunca se tocam. Existe sempre um espaço de nada. De átomos e de vazio. Eu nunca toco em ti porque não existe essa possibilidade. Eu que caminho tocando pessoas. Deixando-me tocar por pessoas. Afinal nunca as toco. Ou toco. Na cabeça. Na cabeça.

O meu amante tem um caralho grosso que me enche a cona. E eu gosto. É um labrêgo. Como eu. E eu gosto.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

no monte


Vee Speers

Ele fez o trabalho de casa. Sorrio. Porque eu não fiz o meu. Acreditei ou quis acreditar. Somos todos demasiado sensíveis. Olhamos no amor como prisão. Empurramos o afecto das nossas vidas. Chutamos, pontapeamos. E quando ele chega. Se chegar. Achamos que é suposto ser assim para sempre. Achamos que não precisamos mais de seduzir. De alimentar.

Ela tinha um caderninho forrado a papel sobre a escrivaninha. Era bordeaux. Não era suposto ela escondê-lo. Não era porque tinha-nos sido ensinado a respeitar os objectos. Os outros. Tinha-nos sido ensinado a evitar a intimidade dos outros? Talvez. Talvez tivessemos todos medo de descobrir que aquele a nosso lado... sentia. E o que sentia. Ela era uma adolescente. Eu uma criança. Ela escrevia sobre paixões, sobre sentimentos de inadaptação, sobre revoltas, medos e frustrações. Eu escrevia sobre príncipes, princesas, lavradores e charruas. O meu cadernos dizia Escolar na capa. O dela dizia nada. Era bordeaux e os meus dedos tocavam-lhe de vez em quando. Era bonito. Possuia uma textura. Abria-o lentamente para o fechar rapidamente. De seguida. Com medo. Pressentindo passos no corredor. Sabendo-me criminosa. Pecadora. Abria. Lia duas ou três palavras e fechava de novo. Tentação. Palavras a ler. Palavras compostas. Sobre ela. Escritas por ela. Por aquela que entrava em casa triste com todos, calada e saía mais alegre porque ia sair. Como se nós a fizessemos infeliz. Fazemos-te infeliz, mana? És infeliz porque existimos? Talvez ela no caderninho falasse. Talvez dissesse qual era o nosso mal. Ou o do mundo. Ou o da vida. Talvez ela dissesse e eu pudesse aprender. Saber. Tentar mudar. Tentar fazer com que ela entrasse em casa alegre. Com um sorriso. Que falasse e não se enfiasse no quarto. Talvez aquele caderninho bordeaux ajudasse. Talvez.

E numa manhã. Sozinha. Com a mãe na escola. As manas na rua. Abri o caderninho. De pé. Em frente à escrivaninha. A tremer. Mas decidida. Abri-o. Folheei-o procurando palavras conhecidas. Nomes. Os nossos. Procurando as críticas. Os nossos males. E não encontrando iniciei a leitura na primeira página. Falava nele. No rapaz que vinha de férias. Na mãe. E nas coisas menos boas da mãe. Mas só nessas. Estranho. A mãe que lhe fazia pão com manteiga e dos pauzinhos não constava ali. E falava em amor. Em solidão. Oh mana não te sintas assim. Nós gostamos tanto de ti. Tanto. E que triste. Que palavras tristes. Que solidão. Que ser-se tão sozinha. Oh mana nós gostamos tanto de ti... E poesias. Poemas e mais poemas. Bonitos. Ritmados. Tristes. Embaraçosos. Oh mana que bem que escreves. O caderninho bordeaux. Com cuidado. Uma folha. Duas folhas. Um barulho. Ai. Mas não. Continua. Devora essas palavras. Entende. Tenta entender. Tenho de tentar compreender o silêncio. O sofrimento. A dor. Aquele olhar em nós. Tenho. Faltavam poucas folhas. Deixadas em branco. Sem letras. Páginas limpas. E um coração a bater alto. Ai. Pousou o caderninho. Com cuidado. Na mesma posição. Meticulosamente na mesma posição. Tremendo. Cheia de sentimentos. Oh mana...

Dobrou a folha de papel verde texturado. Pincelou de cola uma das arestas e pressionou contra o cartão. Fez uma dobra no tecido da esquina e fez novamente pressão. Estava terminado. Um livro em branco com 10 cadernos. Cosido. Bonito. Um caderninho para subtituir o Escolar. O infantil. Um caderninho a encher de palavras. E letras. E sorrisos. E príncipes, princesas, lavradores e arados. Ou charruas. Em casa mostra-o. Orgulhosa. Que bonito caderninho. Fui eu. Fui eu. O silêncio da mana entra em casa. Desperta-a. O caderninho dela bordeaux estava terminando. O caderninho do silêncio e da dor estava acabando. Toma mana é teu. Tu precisas mais do que eu.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Calma


Balla Demeter

Um dia adormeci no comboio. Estava bêbada. Entrei e ainda faltavam uns minutos para que ele partisse. Adormeci. O whisky fermentou-me na cabeça e transformou-se em pedra. Quando acordei olhei e pensei que já tinha passado a estação. Corri. Saltei do comboio. Olhei. Vi o comboio seguir. Uma linha. Olhei. Vi que estava na estação seguinte à da partida. Teria dormido? Teria dormido quanto tempo? Teria ido ao fim e voltado para trás? Não sei. Desde aquele dia que não sei. Não sei se fui ao fim e voltei se apenas saí na estação seguinte. A que não era para sair. Mas onde saí.

Voltei a apanhar o comboio. Creio. Era já de noite e não me pude olhar no espelho. Certificar-me que era eu e não ela. Mas sendo eu ou ela fui. Na linha. E desci na estação certa. Na última. Era a última. E aí perdi-me numa terra junto ao mar. Um mar cinza. Como a noite. Era Outono. Creio. Perdi-me e depois procurei um telefone. Quis ligar ao amante dela. Que tomei depois como sendo meu. Ou seria meu e ela apropriou-se dele? Não sei. Ainda hoje não sei. Quem foi a primeira...
Ele atendeu-me com voz de sono. Eu suspirei por senti-lo em casa. Estava só. Perdida. Junto a um mar cinza. Precisava de companhia. De um abraço. De uma mão. Ajudas-me?

Era tarde. Lembro-me que era tarde. Eu começava a ter sono e ela queria dançar com ele. Ele também tinha sono. E amanhã trabalhava. Amanhã? Amanhã logo se vê. Amanhã é longe. É uma distância imensurável. Anda. Vem. Vem buscar-me. E de mão dada a mim ele levou-me. Deu-me de café. Deu-me de água. Depois levou-me a sua casa e deu-me de jantar que não jantei. Eu. Ele olhava. Ela ria. Ria por ele ser assim. Ria por me ver assim. Tola. Provocou-o. Ou fui eu. Uma das duas provocou-o. Encostou-o ao balcão e esfregou-se. Prendeu-lhe as mãos e cheirou-o. Contou-lhes sonhos e segredos ao ouvido. Ele parado. Ela ou eu segredando. Sorrindo. Sim. Não se faz. Estás bêbada. Sim. Não se faz. Voltei-o para mim não se faz. Dá-me um beijo na minha boca impestada. Dá. Dá.

Ela deitou-se no sofá. De cabeça apoiada nas mãos. De pernas semi-abertas. Olhando na janela em frente. Sentido o tecido mole e rugoso do sofá de encontro a barriga. De encontro os mamilos. Vem. Disse eu. Vem. Ele deitou-se sobre o meu rabo grande e com o corpo cavou um fosso. Senti-o. Senti. Mãos nas nádegas. Mãos nos seios. Um círculo e meio e... ai. Ai. Fundo. Gritava ela. Em círculos. Gritava eu. Mãos nos seios. Força. Forçando. Ai. Sim. Estava bêbada e aqueles empurrões sabiam-me a montanhas russas. Todo dentro. Todo. Abrandou e eu estava num barco em rio pacífico. Devagar. Devagar. A janela na frente. O caixilho em madeira branco. Uma sujidade no canto do vidro. Estar bêbada, estando desperta. Estar bêbada sentido tudo. Ele falou-lhe entre dentes. Para ela. Eu mantinha-me em silêncio. Olhando a janela. Um. Dois. Três minutos. Trinta. Trezentos. Teria ficado ali até hoje. Naquele sofá à beira janela plantado. Ali. Ela riu-se. Tola. Com força.

Aos saltos. Os seios abanando. Saltitando. Segurou-os. O tractor rebentava-lhe os peitos. Maldisse aqueles caminhos de pedras e terra batida. Que este fosse o último ano que para ali ia vindimar. A primeira vez que olhou na vinha e não lhe vendo o fim pensou "nós nunca conseguiremos terminar isto". Mas terminaram. Terminaram. E nem um cacho de uvas ficou por apanhar.

Part-time



A minha casa. Esta casa onde habito. Onde permaneço. Para onde volto. Onde me deito. Está vivida. Desarrumada. Possuo ilhas espalhadas pela minha casa. Pequenos móveis, caixas que foram deslocadas e entre as quais me movo e contorno e rodopio e ando. Não arrumo. Não limpo. Movo-me. Adapto-me à desarrumação de minha casa. Oriento-me na confusão. Por vezes, raramente penso que poderia colocar aqueles livros na estante. Que poderia arrumar as caixas. Que poderia deslocar o cadeirão. Que poderia tornar o caótico em algo mais prático. Mas é só por vezes. Porque nada faço. Deixo-me estar. Aqui. E deitada. E lendo. E olhando no nada. Uma pilha de roupa suja a sair do saco. Duas outras de roupa lavada. Cuecas lavadas num canto. Meias já dobradas num outro. O edredon lavado e seco sobre o sofá, por dobrar. E a Verónica olha-me enquanto aqui estou sentada. A Marta está de costas para mim e quando me debruço no lavatório vejo-a a olhar-me. Existe uma caneca sobre a estante. Só a vejo quando me vou deitar e como me vou deitar não lhe mexo. Que apodreça. Que se esfume a caneca.
Digo-me. É este fim-de-semana. Mas não será. Não será neste ainda. Ou não sei. Sei que não quero arrumar. Quero destruir. Quero ser comunista. Mandar abaixo para reconstruir. Quero viver numa outra casa. Senti-la outra. Um iniciar de um ciclo. Pintar uma parede de verde. Por papel de parede no quarto. Mandar fora o roupeiro velho e que modifiquei. Atirar fora objectos. Limpar. Lixo. Lavar. Lixo. Arrumar. Lixo. Por um pano na cabeça e pintar. Encher-me de tinta. Suar. Sujar. Sujar-me. Depois um orgasmo. Deitar-me no chão do quarto e esfregar-me. Encher-me de líquidos. Meus. Ou teus. E um banho. Reparador. Olhar na casa e sorrir. Senti-la outra. Sim, uma outra. Como eu. Uma outra.
E receber o meu amante num novo quarto. Deitar-me com o meu amante numa cama diferente. Ralhar com o meu amante porque ele desarruma muito. E com o Fernando. Tentar manter a harmonia desta casa que será outra.

Vou abrir-te a porta. Está escuro nas escadas. Tens dificuldade em subir. Medo? As escadas sujas que não vês. No topo uma sanita. Uma luz no cimo.

Estou vazia. Só penso em trabalho. E nele. Parece que há notícias no mundo. Uma gripe... e umas coisas mais. O meu amante foi de férias. Fiquei sem amor. Sorrio. Pondero em recorrer a trabalhadores temporários. A um freelancer. Aceitam-se candidaturas. Sorrio. Precisa-se de homem que goste de foder. Que saiba mexer o corpo. Que encoste as mãos no meu e me faça estremecer. Que me dê prazer. Que me faça vir. Que me fure e me espete. Com força e lentamente. Que nos intervalos goste de conversar. Que ria e sorria. Que gema de prazer. Que acorde os meus vizinhos. Que me rasgue e canse. Que me faça dormir pouco. Que me esgote em mente. Que me ponha a cona dorida. Dolorida. Que me tremam as pernas no dia seguinte. Que me suje os lençóis. Que me faça o jantar. Que me deixe a loiça por lavar. Que ande nu pela casa. Que se sente no sofá a fumar. Que me toque e me beije. Que me queira bem. Que me sorria. Que goste das minhas palavras. Que me entenda. Ou não. Que me oiça e fale mais para que eu tenha de falar menos. Que me lamba. Que goste de obscenidades. De me chamar de puta. E de adorada. Que me diga o que sente enquanto fode. Um amante. Por uma temporada.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Medeia


Leonardo da Vinci

Vestir-me de prostituta. Pentear o cabelo como prostituta. Maquilhar-me como uma prostituta. E bater à tua porta. Passar pelos teus vizinhos simulando trejeitos de boca e olhos neles. Subir as escadas bamboleando as ancas. De mini-saia. Uma puta.

Existiu um silêncio em mim. Por ter muito para dizer e não poder. Agora existe um silêncio em mim. Por ter muito para dizer e não conseguir. Um silêncio com cheiro a pó de caminhos de terra batida. Com sabor a cigarros pela manhã. Com som de esquina e miares de gato. Um silêncio com som de vizinhos que discutem e se agridem. Com som de árvores de folhas ao vento. Com som dos meus cabelos batendo-me na cara. Com som dos carros passando ao longe na ponte. Com som de lábios cerrados. Com som de sono e olhos cansados. Com o som da mais bela melodia. Um silêncio branco. Para onde todos os sons convergem. Os que me rodeiam e os que não oiço e nunca ouvirei.

Elas vestiam-se e maquilhavam-se. Rodavam em frente ao espelho. Retoque aqui. Retoque ali. Ensaiar sorrisos e olhares. Eu sentada. Despiam-se para se vestir e voltar a despir. Trocavam piadas e risadas. Dançavam e sorriam. Comiam bolachas com sabor a baton. E eu ali sentada. Um dia vesti o vestido que me deram. Nas pestanas uma coisa preta. E eu levantei-me. Sentei-me. Levantei-me por que me pediram. Fui e passei a noite sentada. O vestido não era eu e eu não conseguia caminhar com ele. Sentia-me... outra. Mas não como com uma máscara. Não vestindo um papel. Apenas outra. Igual a todas as outras.

A minha irmã é bela. Tem um nariz adunco que eu adoro ver de perfil. Ligeiramente inclinado. A cara de testa grande termina num queixo marcado. A minha irmã é bela. Ensinou-me a gostar dos números. Da Matemática. Da Física. Não passei para a Electrónica. Preferi dormir. Ressonar num sono profundo.

Que gaita! Que grande merda! E agora? E agora? Diz-me, que faço eu agora?
E refiro-me a... a nada e a tudo. Ao que eu quiser.

Li-a. Li sobre ela. Era uma mulher. Uma sedutora. Uma carente. Uma sedenta. Parece que se baralhava. Nas palavras amor e sexo. Parece que não as conseguia combinar. Mas eu cansei de lê-la. Agora vou dançar. Dançar com lágrimas a escorrer. Porque existe o silêncio. Porque já não existem testemunhas. Não existem mais testemunhas. Quem quer testemunhar? Só ela. Só ela.

Lavagante


John Currin

Eu podia dizer-te que ando cansada. Que tenho trabalhado muitas horas. E que nessas horas não paro. Que ando, subo e desço. Que oiço, explico e faço. Que arrumo, abro e fecho. Que altero, coloco e retiro. Que obrigo-me a olhar na maquete. A perguntar se é azul, se é branco. A pedir que montem o varão do cortinado e a prateleira branca. Podia dizer-te que falo um português espanholado e que as savanas e as fundas nórdicas devem ser rosa pálido. Que as alfombras e os cojines são em rojo e el colgante devera se quedar en centro. Eu podia dizer-te que o mar se encontra no fundo de tudo isto. Calmo e pacífico. E que o Tejo acaba bem ali. Que as duas margens passam a apenas uma, enquanto fumo um cigarro na varanda que é refúgio. Que desesperei por um café. Que acordei às 6 e às 7. Que a casa é horripilante e sem harmonia. E que alguns ambientes são tenebrosamente castanhos e escuros. Que existem artigos que mereciam ser queimados. E que existem gostos que não podem nem devem ser discutidos. Podia dizer-te que aquelas mulheres me assustam e que a da fala castelhana, chamada de Joana, alta com cara de bebé, tem uns pés grandes que me fascinam. Olho neles sempre que passam. De unhas sangue de boi. De dedos espatulados. Falar-te da que está grávida e quer devorar este mundo e da quantidade de dúvidas com que fico depois de ouvir seis mulheres a decidirem de que cor pintar uma parede. Sim, fico tonta e com vontade de me sentar. De colocar as mãos na testa e cantar uma qualquer música. De escrever em papelinhos, dobrar e tirar à sorte. E que um deles seja Vou-me embora. E um outro Estou em greve. E mais outro Não diga disparates. E outro Porque não pensa antes de falar? E falar-te em como me pedem água, têm sede. Em como me pedem candeeiros, têm dúvidas. Em como me pedem cadeiras, estão cansadas. Em como me pedem. Pedem. Pedem. E eu subo e desço. E páro e penso. Por segundos. Por milésimos de segundos. E chupo num cigarro. O prazer que me é concedido. Ali. Sim, devíamos todos andar mais bem fodidos. Seríamos todos bem mais felizes. Uma boa foda obriga a um sorriso grande de manhã. A um cansaço que descomplica o dia seguinte. A gargalhadas de vida perante dificuldades. A minimizarmos o que não tem importância, o que nos molesta e abate. O que nos desgasta e entristece. Uma boa foda. Tem de ser boa. Mas se for boa é magia. Podia dizer-te tudo isto. Podia falar-te em tudo isto. Mas prefiro foder-te. E que me fodas. Prefiro sentir-te dentro a sentir o longo dia. Prefiro estremecer de prazer a tremer de impotência ou raiva. Sim, prefiro a foda. Uma boa de uma foda. Uma boa foda.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Abecedário


Spencer Rowell

Não me conheces. Mas conheces-me de toda a parte. De todos os lados. Daqui e dali. De lá e de cá. Conheces-me não me conhecendo. Sentes que me conheces não conhecendo. Que já nos cruzámos nessas ruas. E que parámos olhando um no outro. Em frente um do outro. Olhando. Tentas lembrar de onde. De onde me conheces. Eu conheço-te. Mas de onde? Desesperas na procura do local até te aperceberes que é dali e daqui. De lá e de cá. Destas ruas e calçadas. Desta cidade, de descidas e subidas, onde passeamos e vamos a caminho. É daqui desta vida. Destes locais com trânsito, apertados e livres. É daqui e dali. É aí que já viste o meu sorriso. E o meu andar. Foi aí que eu te vi. A caminho de algum lado. Cruzámo-nos. E nem sempre parámos. Caminhávamos para algum lado. Quantas vezes nos cruzámos? E não olhando um no outro seguimos? Quantas vezes eu fui ao jardim e passei na tua frente? Quantas passaste à minha porta? E não nos vendo, não sabendo da nossa existência sempre nos conhecemos.

Dance me to the end of love.

Nunca te vi mas conheço o teu cheiro. Sei ao que cheiras. E ao que sabes. Sei. Aprendi-o. Muito rápido. Ainda que lentamente no meu interior. Degustando. Fui saboreando no movimento das tuas palavras. Conheço-te. E quero-te. Mas já sem forças. No caminho perdi-as. Já sem esperança. No caminho larguei-a. Quero-te mas se não te tiver ficarei bem nesta estrada. Desculpa a minha falta de entusiasmo mas tenho andado descalça. Os sapatos já não me servem. Ainda que a música faça todo o sentido. Ouves? É linda. É tudo aquilo que eu sinto. É. Fala de mim. E de ti. E de todos nós. Na nossa natureza e procura. Nas coisas que roubamos. E tiramos, e sacamos. Mas também nas que damos e recebemos.

The beast won't go to sleep.

Temos de ir. E vir. E estar. Eu tenho de ir. Mas volto. Se aqui estiveres. Se me quiseres. Se quiseres. Se me esperares. Não te sentes. Eu digo-te quando venho. Não te sentes. Eu venho. Vai passear que eu venho. Venho eu e vens tu. Vimos os dois. Vimo-nos?

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Vem ver


Romain Slocombe

Tu vais olhar na tua frente. Sentir que me vês. Que estou do teu lado. Que sentes a minha mão brincar na minha perna. Os meus dedos roliços deslizarem na minha perna. Sentes-me nervosa. Nervosa de ti. A querer-te. No silêncio. Vais ver-me a teu lado. E calado observas-me. Eu abro a boca para dizer algo. Algo que tu já sabes. Fecho-a. E tento novamente abrir. Mas tu já sabes. E calas-me. Calas-me com um olhar. E depois do olhar que eu tremo, calas-me com um beijo. Um beijo em mim. Para que me cale. Para que não me pronuncie. Porque é doloroso. É doloroso este sentir assim. Porque eu sofro por ti. Porque sofres por mim. O teu braço toca-me na cintura. E amarra-me. Um beijo que ainda não terminou. Sentes-me os lábios. A língua. Um beijo. Um beijo leve sem força. Sem carne. Um beijo de corpo com alma. É nesse beijo que te perdes. Onde eu já me perdi. Tinha de ser assim. Sabemos que tinha de ser assim. Uma atracção. Um beijo.


Vais perguntar-me quem sou eu. E eu não sei responder. Ficarei calada a teu lado. Querendo olhar-te. Com medo de olhar-te. Ou talvez não. Talvez me vire para ti e me vejas os olhos. Quem sou eu? E tu quem és? Sim, poderei responder com uma pergunta. E tu tentarás responder-me com banalidades. Mas calas-te. Sabes que não é isso. Não foi isso que nos perguntámos. Silencias-te. Ainda tens na cara o cheiro do beijo. Nos lábios o sabor do beijo. Nos meus um tremor. Uma vontade de me silenciar na tua boca. Pela tua boca. Através da tua boca. Olho-te. Toco nos teus cabelos. Grisalhos. Observo os dedos que entram e passeiam nos teus cabelos. Questionas-te. Serei assim sempre? Não sabes. Mas queres perguntar. Saberes-te especial. Sem dúvidas. Saberes-te único. Eu olho. Sei. Sei-te. Sorrio. As tuas dúvidas dissipam-se. Ou não...

Quem nos uniu? Porque nos unimos? Porque existem estas leis? Que empurram corpos contra corpos. Mentes contra mentes. Corações contra corações. Que leis são estas que não são científicas? Diz-me tu. Tu homem de números e teorias. Eu não sei. Nada sei a não ser sentar-me a teu lado e esperar que me beijes. Nada quero a não ser sentar-me a teu lado e esperar que me beijes. Beijas?

Cruz Quebrada


Nicholas Sinclair

Um livro sobre a mesa. Dois livros. Três. As possibilidades. E a existência da impossibilidade. Na minha vida há sempre impossibilidade. Em mim. Ou exterior a mim. E sinto um pequeno vazio a invadir-me. Refugio-me aqui. Na música. Nele. Vale tudo menos parar. Sentir. A falta. Um pedaço de mim. Vamos colocar vírgulas e pontos. E ter saudades. E alimentar saudades. E. Não sei. A música é forte. Tem batida industrial. E os meus olhos fecham-se. De sono e cansaço. De querer não dormir porque me é difícil. Ainda o é. Desde que o conheci que o meu corpo rejeita a cama. Foi há quanto tempo? Parece uma eternidade. E foi ontem. Ou antes de ontem. Foi num dia em que quis atravessar a ponte a correr. Mas decidi-me. Está decidido. Cala-te. Cala-te.

E puta de música forte. Dá-me vontade de... sim espelhar-me animal! De sair e olhar nelas e neles. De ser labrega. E ordinária. De vazar e encher. Verbos. Todos os verbos. Possíveis e impossíveis de dizer. Gostas? Assusto-te? É. Sinto-me assim e nada mais posso dizer. Mas não temas. Não temam. A mim foi-me ensinado o dever antes do prazer. A minha felicidade depende da entrega do IRS no primeiro dia? Não, mãe. Eu apenas quero amor. Sim, sexo. Também. Sim, também.

E dormi. E hoje já é outro dia. Cansei-me e dormi. Porque o sono é sempre reparador da pele e dos dedos. E parece ou parece-me que já me habituei ao silêncio. Que o começo a aceitar. E que começas a ser memória. Restou-me o sal e a pimenta. E falemos de produtividade. A produtividade de quem como eu gosta de fazer. Mas não lhe apetece. Não me apetece. Queria estar aqui sozinha, com o ouvido na rua, um olho no chão e outro na parede.

Perguntei-lhe se não queria sair. Podíamos passear. Ir a um jardim. A um museu. A uma exposição. Mas não. Que não. Tinha medo de cair. Que chatice. Que chatice. Então fiquemos aqui. Conversemos. Queres ver o documentário do António Barreto? Mas não, que não. Que chatice. A chatice de sermos velhos e já tudo termos visto. Serei e sou diferente. Sou? E conversemos. Fala-me. De ti e do meu pai. Houve amor? Quando? Por quanto tempo? Que chatice. E tu não contes isto às tuas irmãs. Não, mãe esteja descansada. Já me esqueci. Só me lembro que não era para contar. Lembro-me que me pediu segredo mas não lembro dele. As irmãs Brontë são chatas. Sim, chatas. Sim a Emily e a Charlotte são anjos em cima dos quais urino. Txiiii... E essa outra da Jane Eyre também, ainda que eu fosse adolescente e sonhasse em casar frente a um altar. Mas só com ele. Com aquele homem loiro por quem me apaixonei. O que tinha uma quinta e montava tractores como se fossem cavalos. E que aos meus olhos parecia um príncipe. O que me abraçou e enrolou nos braços. E sentiu culpa. E eu a querer. E ele em culpa. A impossibilidade. Quer um chá? E feijão verde? Uma caneca de feijão verde. Sabe mãe, eu nunca vi um beijo seu no pai. E tudo isso é muito estranho.

Existe um círculo e eu ando aqui à roda. O poço da morte. Ou da vida.

domingo, 19 de julho de 2009

Dorothy


Jan Saudek

Eu quero falar de ti. Quero porque aprendi a olhar-te. Na penumbra. Eu de camisa. Tu de cuecas. Ou boxers como dizes. Cuecas. É estranho. E não sei se algum dia entenderás a estranheza. Se visualizarás o mesmo. Digo-te que no passado, olhando em mim, via algo estranho. Como se as feições do rosto pudessem mudar de tal forma que deixava de me assemelhar. E nessas alterações, nessas transformações e mutações, eu podia ser a mais bela das mulheres. Ou a mais feia e banal. Eu podia encantar qualquer mortal. Ou passar entre multidões sem olhos. E é isso. É isso que visualizo em ti. Sou o teu espelho. E há alturas. Posições. Perfis. Em que tu és o homem mais belo jamais concebido. Em que o teu sorriso é perfeito. E o olhar. O riso. A tesão. Há momentos em que estando eu por cima, por baixo, de lado, no sofá, à mesa, na cozinha, eu olho, em ti, para ti, e tu tens um rosto de jovem romano, intemporal. Belo. Tão belo que me calo. E deleito-me. E fico séria. De olhar em ti. Extasiada. A querer parar o tempo. Os minutos. E captar. Registar e beber de toda essa beleza que emana do teu rosto. Que chega a mim e me fascina. E surpreende. E silencia.

Que preferes? Que te lamba o cu com a língua em espátula ou te penetre insistemente com ela afiada?
Sorrio. Perdoa-me.

Necessito de música. Tão baixinha que para ouvi-la não posso escrever. Tenho de parar de pressionar as teclas. Está abafado. E a minha casa é um delírio. É um prazer revelado. Em roupa espalhada, loiça por lavar, livros pelo chão, homens que repousam na minha cama, móveis deslocados, poesia. Há poesia em minha casa. Memórias que ainda não o são. E quando forem cheirarão a sexo, a transpiração, a roupa molhada. Sair para a rua vestindo a camisola que está embrulhada sobre a mesa e as calças mal dobradas na cadeira. Despenteada. Borrada. Em banhos tomados para despertar os sentidos que se querem vivos. Exaltados. Despertos. Tomar banho para que continuemos nesta dança de nos darmos e partilharmos. Em palavras e penetrações. Em olhares tímidos e obscenidades oralizadas. Em querer continuar com pontas de medo do término. Porque sabemos que pode esgotar. Ou mudar. Ou não. Porque por vezes é apenas aquele momento. Eterno.

Vou tomar banho e depois... depois acordo-te com um broxe.

sábado, 18 de julho de 2009

Terceira


Pierre & Giles

Um momento de ternura. Um momento em que me espelho em letra Trebuchet. Em que me inclino e te beijo. Na memória. Na minha memória esse teu sorriso e postura de miúdo. Gosto de ti. Sorrio. Oiço música de cabaret. A lembrar os cabarets dos anos 50. E recordo-me do Bruce. O Bruce tinha ar de cabaré rasca. De putanheiro proxeneta. Mas eu gostava da pinta dele. Das calças justas nas virilhas. Do cabelo puxado para trás com gel. Da forma como ele andava pelo bairro. O Bruce está velho. Vi-o um dia destes perto da tasca que abre às quatro da manhã e onde as prostitutas comiam antes de se deitarem. Se é que o faziam. Algumas, parece-me que estavam o dia inteiro ali. Naquelas esquinas urinadas. Sentadas em caixotes do lixo derrubados. Olhando em quem passa. Conversando sobre idas ao quarto. Vi-o. Ele não me reconheceu. Eu pensei em perguntar-lhe pela Beta de cabelo comprido oleoso. A Beta de pernas grossas e cintura fininha. Que pintava os lábios de carmim. Pensei em dirigir-me a ele e sorrir. Olhar-lhe nas rugas. Ver-lhe o tempo no cabelo, nos dentes. Ouvi-lo a contar-me histórias. Histórias de viagens, de putas, de prostitutas, de polícias e ladrões. De ladrões de pequena montaria. De ladrões de turistas e rurais ricos. A música continua e eu tenho vontade de fazer o Bruce meu amigo. De poder sentar-me numa tasca nestas tardes de Verão e beber-lhe palavras em forma de conto. De ir à Ribeira procurá-lo. De sentá-lo na mesa. De lhe pagar as cervejas para que me conte. As histórias de Espanha e das Canárias, e de quando ele foi embarcadiço, e a estiva... O frio e o calor da estiva. E as mulheres, toda a riqueza das mulheres na vida do Bruce. O amor, a paixão, as tatuagens, as drogas. Bruce. Conta-me histórias. Conta-me as tuas histórias. De pessoas apaixonadas e loucas. De pessoas em excesso a tentar sobreviver. E a rir. E a chorar. Porque todas as tuas mulheres foram cadelas pelas ruas. Eu sei. Tu contaste-me. E contaste-me de quanto as tinhas amado. Ou não. Qual tinha sido o calibre do uso. Da companhia e da falta desta. E a emoção de te ouvir. De ver-te espalhado nos olhos uma vontade de viver de criança. Uma mágoa por viver de velho. As tuas mulheres Bruce. Fala-me das tuas mulheres. Das insanidades que estas cometeram por ti. E em como tu as recebias. E aceitavas. Em como tu te deitavas na cama enquanto elas se vestiam para mais um dia. Para mais uma rua. Para e sempre a mesma rua. Fala-me dos anos em que viveste com duas mulheres. Em poligamia. Em comunhão. Em como escolhias com quem dormir. E com quem ter sexo. E como evitavas os filhos que não querias. Guardavas-te para aquela que um dia iria germinar a tua semente. Tu que não espalhaste filhos pelo mundo porque o mundo não te dá nada. Vem. Senta-te aí e conta-me. Não pares. Eu bebo água. Gelada. Oiço-te só de te olhar nos olhos. Sinto-te só de te ver esfregar as mãos. Bruce. Nestas tardes de Verão eu poderia ser tua amiga. Queres mais uma cerveja?

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Lúcifer


Misha Gordin

Não posso fazer barulho. Teclo devagar para não fazer barulho. Para não interromper este silêncio que se sente. Para não ser mais forte que o chilreio dos pássaros. Devagar. Lentamente. Não quero acordar o estranho que dorme na minha cama. Um estranho que escolhi ao acaso. Ontem. De noite. Num bar, numa rua com portas abertas e pregões nas paredes. De calçadas lavadas e edifícios estreitos. Não quero. Não quero que o estranho que escolhi ao acaso, acorde e me veja aqui nua, escrevendo. Não ponho música. Eu que escrevo sempre com música. Não fumo. Eu que fumo muito quando escrevo. Somente o café me acompanha. Digo que foi ao acaso mas é mentira. É mentira. Demorei cerca de 33 minutos a escolhê-lo. 33. A ele. Ao que está dormindo na minha cama. Com um sono leve. Com uma respiração de criança. O estranho que dorme na minha cama. Vi-o. À porta. Parado. Sorrindo. Com ar de malícia numa mulher. Com ar de lascívia no rabo de uma mulher. O estranho deitado na minha cama. Segurava na mão um copo e na boca um cigarro que movia ao som do olhar fixo no rabo da rapariga. Que saltava de contente, de conversa e de riso à porta do bar. E foi aquele olhar que me fez parar na porta. Encostar-me à ombreira e olhar, também eu, no rabo da rapariga. De calças azuis, apertadas, coladas, transparentes e descidas. E do rabo olhei nos olhos dele. E os dele encontraram os meus. E os meus viraram rabo. O rabo dela nos meus olhos. Um rabo que segreda promessas. De abertura e de prazer. De joelhos e intensas. De loucura e gemer. E os olhos dele desejaram os meus em forma de rabo. Sorri-lhe com a boca e com os olhos. Disse-lhe que morava perto. Tão perto que era um instantinho. Fácil. Logo ali. Ao virar da rua. Na outra, mais à frente. Tão perto que podia ir e vir sem se aperceber da viagem. Tão perto que seriam dois, três minutos. Que não se iria cansar. Que em casa tinha vinho, e cerveja e cigarros. Um sofá e uma cama. Acompanhou-me. De olhos postos no meu rabo. No meu corpo em forma de malga. E nos passos que dei senti os olhos dele. E nas escadas que subi uma mão. E na porta que fechei os lábios. E na cama onde o deitei a sua transpiração. Mas agora não posso escrever mais. Não quero acordar aquele estranho que dorme na minha cama. Não quero olhá-lo com estes meus olhos matutinos. Que já não têm a forma de um rabo. Que já não são rabo. Estão borrados. Frágeis. Matinais. Espelham quem sou em intimidade. Eu. E eu posso partilhar a cama onde dorme o estranho que tento não acordar. Mas nunca partilho este meu olhar em forma de eu. Este meu olhar matutino.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

farelos farelos


John Crowther

Há jornais online que não leio. Que abro e não leio. Tal como revistas na mesa que nem sequer folheio. Olho-as e ainda que no passado as lesse, hoje não leio. Há blogues que já nem abro. Nem leio. Há rádios que ouvia e já não oiço. Já nem ligo. Há uma imensidade de coisas que fazia e já não faço. Porque não quero. Por agora não quero. Não me apetece. E há relações que já não tenho. E outras que não terei. E outras a reconquistar. E outras a descobrir. Há.

Migalhas.

Soube desde o início que ele era especial. Que quem se mostra assim, que quem escreve assim é especial. Que tem a lua e as estrelas nos olhos e raios de sol nas pontas dos dedos. Que não se quer explicar. Que não se quer fazer explicar. Que quem quiser que se esforce por entendê-lo. Que temos de ser inteligentes. Ou inventar. Criar nós mesmos a nossa interpretação. Que tem de ser assim senão somos banais. E somos. Todos somos. A minha banalidade em estender e apanhar roupa. A minha banalidade nos pingos do nariz. Das compras do roll-on. Dos telemóveis e netcabo. A minha banalidade. E outras. Outras. Aquelas que vivi intensamente e que se banalizam.

Não sei ainda bem o quê mas algo mudou em mim.

Na varanda ri-me. Ri-me alto. Aproveitei e ri-me. Sozinha em riso alto. Eu. Eu por vezes espelho-me louca. Mas eles não sabem. Que eu, aquela que se senta a fumar na varanda sou eu. A que aqui me sento a escrever. Sabes foi uma sensação nova. Nunca me tinha sentido assim. Uma mulher de Eric Staton. Não das boazonas. De umas outras que ele tem. Grandes e gordas. De coxas largas, barrigas com pneus e mamas inchadas. Uma giganta. És bonito. Entre as minhas mamas. A esfregares-te nas minha mamas. Com esse olhar de... querer. De gato. De lince. De leão. De quer e vai. Quer e toma. Liberto-me.

Nada a dizer. As mãos prendem-se no teclado. Sim tenho de o fazer. Sim.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Cuore


Ivan Pinkava - Salome

Eu quero revelar-te um segredo. Xiu! Baixo. Baixinho para que ninguém nos oiça. Chega-te a mim. Sim. Não tenhas medo. Chega o teu corpo ao meu. É melhor que te coles. Que me sufoques num aperto. Para que ninguém nos oiça. Nem os vizinhos. Nem aqueles que ali passam. Nem ela. Nem ele. Não quero que saibam. É segredo. Isso, chega-te a mim. Agora deixa-me tocar com os meus lábios na tua orelha. E soprar no teu pescoço a minha respiração. Sentes? É segredo. Segredo. Vejo-te os poros da pele. De tão perto. Sinto-me microscópio. Sim. Vira-te para mim e abraça-me. Enlaça-me. Finjamos que dançamos. Ou que nos amamos. Finjamos que estamos namorando. E beijando. Que não nos conseguimos descolar. A paixão. Chega. Chega-te a mim. Ouves? Sentes o vento que sai da minha boca? Deixa-me fixar o teu cheiro. O teu perfume. Antes de te dizer o segredo que trago em mim. Xiu! Fala baixo. Ninguém sabe. Nem a minha mãe. Nem a minha irmã. Nem a outra. Nem a Catarina. Nem o Fernando. Ninguém. Queres saber? Chega-te. Não te soltes. Vem. Vou contar-te. Começo a sentir-te. A sentir-te tão perto que não sei se o quente no peito é meu ou teu. Aperta. Isso. É que o segredo é velho. Velho como eu. Sim, transpiro. E tu? Também. Tens as palmas das mãos suadas? E no pescoço visualizo gotas. Não me soltes pois ainda não te contei. Cresces. Sinto que cresces. Sentes? Não, não peças desculpa. É só pelo segredo. Tudo para que saibas o segredo. Tudo para que eu possa contar-te o segredo. Sabes. Tenho medo. Receio que ao saberes me rejeites. Ai. Que aperto. Sim. Não me vais largar nunca. Nem mesmo depois deste segredo. Xiu! Vou sussurrar-te então o segredo. Tão baixo que duvidarás se ouviste bem. E eu terei de repetir. E repetirei ainda mais baixo. E em ânsia vais querer olhar-me nos olhos. E nos lábios. Ler-me nos lábios o segredo. E sim. Sim. Olha-me. Sim. Sente-me. Vês. Lê. Nos meus olhos. Nos meus lábios semi-abertos, semi-fechados. Consegues ler? É isso. É isso.

Mais logo


Francesca Woodman


Com quantas pessoas podemos ser felizes? Com quantas pessoas podemos fazer amor e amar?
Com quantas nos podemos relacionar? Limitam-me os números. Quando aprendi que do 1 ao 1,1 vai uma infinidade deles. Que não tem fim.
Chamam-me louca. Talvez. Talvez. Mas eu gosto do algarismo 7. Rio-me. 7. Que tal? Tentar 7? Não. Teria de ter como profissão o amor. E o sexo. E tudo aquilo que bebo e como. E defeco. E ter em mim quatro braços, e cinco pernas. Duas cabeças e uma tromba de elefante. Rosa. Rosa claro.

É que existem relações que me fascinam. Que sempre me fascinaram. Pela relação. Pelo poder. Pela intensidade. Pelo sentimento. Amar-te porque nunca terás erecção para me penetrares. Amar-te porque nunca me amarás. Amar-te porque nunca te poderei dar mais que este amor. Amar-te porque me magoas. Amar-te porque me fazes doer. Amar-te porque te provoco. Amar-te porque te ajoelhas. Amar-te porque me lambes e não sabes lamber. Amar-te porque me fodes com força. Amar-te porque me queres consumir. Amar-te porque me dás banho. Amar-te porque me chicoteias. Amar-te porque ris. Amar-te porque sim. E porque não?

E sim não é a primeira vez. Já antes tive dois, três amantes. Sim, é verdade. A minha felicidade por os ter.

Sentámo-nos os dois no degrau em frente à casa. O meu cu gordo contra o cu dele. Falávamos em como gostávamos de tudo aquilo. Deles. Dos nossos Senhores. Parece que foi há muito tempo. Parece que eu era criança. Mas tinha as mãos que tenho hoje. E os olhos. E tento recordar-me o que esperávamos. Porque não levantávamos os nossos cus gordos daquele degrau. Porquê? Esperávamos que anoitecesse para entrarmos em casa e escondermo-nos. Foi contigo que aprendi a ver-me. A olhar em mim. Ou não. Tu dizes que não. Dizes que eu sou honesta. Sou? Não sei. Há em mim a ingenuidade de quem quer acreditar. De quem vai à catequese. Foi no Museu de Arte Antiga. Passámos um pelo outro. Na porta. Eu abri a porta. Empurrei-a e tu puxaste-la. E continuámos. Hoje tu abririas a porta e eu passaria. Depois voltaria atrás para te abrir a porta. E ririamos por sermos assim.

Sim eu oiço. E vejo. E consumo. Vozes e imagens e café.

Um vómito. Preciso de vomitar. Vomitar-me até ao vazio. E se for na tua frente vou ter de o engolir.

Maternidade


De LaGrace Volcano

Existe roupa que demora dois dias a pendurar-se na corda. As asas que têm são pequenas. Voam devagarinho. Devagarinho.
Lavamos a cara e as mãos. E o corpo que se quer brilhante como cebo. Lavamos. Purificamos. E ajoelhamo-nos perante o pai e o filho. Depois do sabonete e do shampoo. Depois do pequeno-almoço tomado em esplanadas de calçada. Que coisa preta. Que coisa branca.

Já ouviram falar em Epifanias?

Eu não. Até...
Eu sim.

Foi de repente. Tudo mudou. Ainda tenho dificuldades em perceber como. Assim. De repente.
Desculpa. Desculpa eu ser assim tão ligada às sensações, aos sentimentos. Desculpa. Choro. Do coração. Desculpa. Faço-te o luto e ainda não me vesti de preto.

Fado do cigarro.

Trazem-me cadeiras, sofás, camas, cadeirões, para que me sente. E eu que não me quero sentar. Não quero. Obrigado. Deixem-me de pé. Em pé.
E sinto-me um poço de amor. Porque fundo. Porque inesgotável. Porque olhamos e vemos apenas a superfície. Porque não me apetece explicar que existem líquenes, e sapos, e musgos, e toda uma diversidade de vida. Corpos que se banham na água. Surdos.

Sal e pimenta. Água e Fogo.

Se não fossem as pessoas a minha vida seria vazia. Seria nada. Se não fossem as pessoas era a maior das solidões. Se não fossem as pessoas eu seria uma brisa sem força. As folhas das árvores cairiam no final do Inverno. E a janela mesmo que aberta pareceria sempre fechada. Se não fossem as pessoas eu não era.

Não esperava arrebatamento. Não. Julgava-te racional. Mais contido. A medo. Com receio. Receio de mim. Eu que gosto de ser serpente. De colocar questões. É como comer morangos no morangal.

A minha mãe, ao que parece, pois não me lembro, por vezes não tinha paciência para nós. Sentava-se no cadeirão que agora é meu e dizia-se cansada de moços. Lia. Hoje tenho uma reunião às onze. E ficava aqui. Nesta janela branca. A preencher esta janela branca. Com corezinhas pretas pequenas. Em forma de letras.
É às onze.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Napoleão


Kiriko Shirobayashi



Madeira branca. Vidro transparente. Uma janela. Cinza. Daqui vejo o vento. Todos os dias o vento.


Estás velho. Mas os teus olhos brilham. Como se hoje fosses a criança que eu nunca conheci. Como serias? Brincalhão? Divertido? Sério? Montavas cavalinhos de pau? Acredito que sim. E que erguesses espadas na mão. Que colocasses a ponta da unha na boca. Mordiscando. E que as pintas castanhas dos teus olhos cinza-azul-verde fossem mais pequeninas. Saltavas para o colo do teu pai? E que te dizia ele? O mesmo que tu a mim? Rias? Lembras que rias? E que fazias cavalinhos com as tuas próprias pernas? O esforço. Sim, o esforço. Uma em cada perna. Saltitando. Rindo. Mais pai, mais. Com mais pressa.

Se pudesse dava-te uma flor todos os dias. Sei que tens prazer nestas pequenas coisas. E enchia-te a casa de jornais. E uma loja do chinês. Para teres muita quinquilharia. Para encheres as prateleiras de bonecos, taças, copos, inutilidades. Sempre apegado a inutilidades. Os dourados. Lembras que pintavas tudo de dourado? E como a mãe não gostava... e o anis? No sótão. Os Domingos à tarde. Nós, tu e toda a pequenada. Nos montes. Na serra. Calhaus. Areia. Terra. Esfolar os joelhos de encontro à vida. E as conchas. Caixotes e caixotes de conchas. Para pintar. Para pintarmos. E os chapéus de cartolina que nenhuma de nós gostava de usar. Os caracóis em caixas vazias de detergente e os bichos da seda em tabuleiros gigantescos que levávamos a passear na parte detrás do carro. És lindo. Sinto-me muitas vezes como tu. Com esta vontade de fazer coisas. Com este querer mexer e andar.

Arrastas a voz. E eu não te entendo. Sofro. Dói. Não entendo. Não entendo. Coloco-te perguntas só para que penses que te oiço. Oiço mas não entendo. E os teus delírios, sempre tão semelhantes às histórias que me contavas. Na cama. No Inverno por baixo dos lençóis. Lembras-te de roeres a pontinha do lençol? Os teus beijos. E a tua mão na minha. E a forma maravilhosa como imaginavas e narravas histórias. Devo-te isso pai. Devo-te este meu querer criar histórias. Este meu querer contar. Este meu querer. Obrigado. Sempre foste um sonhador. Um poeta. Um que se deixa ir. Um dos que não se faz mais. Que cresceu por ele. Já te disse que te amo? Já. Creio que sim. Digo-o. Tenho medo que vás e eu não tenha dito. Então digo. Sim. Amo-te. Sei que fizeste o teu melhor. O possível. Sabes pai, há dias assim. Dias em que me sinto criança. Dias em que a minha felicidade seria poder dar-te a minha mão, olhá-la e vê-la de novo pequenina.

Largada de touros


J S Ross Bach

Uma roda. Um carrossel. Colorido. Azul. Amarelo. Verde. Vermelho. Rosa. Pipocas. Algodão doce. Um rodopio. Um enjoo. Uma tontura. Rodar. Rodar. Num ponto aqui. Agora ali. Sobe e desce.

Adoro-te.

Espelho-me em ti. Espelhas-me. Abro a boca e dou-te uma dentada. Bate-me. Para que me cale e me encerre nesta vertigem. Já ouviste falar no museu de marionetas? Ou em museus? Em um qualquer museu? Que fazemos com tantos museus? Não vamos. Sentemo-nos. Olhando as beatas no chão. Fumando. Digo-te que não e no segundo a seguir estou de mão dada. Digo-te que não e deixo-me vendar. Mas não. Não é isto que eu quero. Digo. Afirmo. Convicta. Mas vamos. Leva-me.

As mamas. Ainda marcadas. E esta falta da tua pele em mim. Apetece-me dizer aqui o teu nome. Posso? Posso dizer aqui o teu nome? Escrevê-lo? Posso? Deixa... quero. Tenho essa necessidade. Apenas de dizer o teu nome. Escrevê-lo. Para que tudo fique escrito. Deixa. Excito-me. Sim. Apenas porque não posso escrever aqui o teu nome. Porque tenho que te deixar no anonimato. Tenho? Deixa.

E não digo nada. Esperas que diga alguma coisa? Que posso eu dizer? Tudo o que te digo volta para trás. Tudo o que te digo é retirado. Com toalha, pratos, talheres, copos, tudo. É puxado. Arrombado. Partido. Dilacerado. Em cacos. No chão. Digo. Digo. E... calo-me. Ou afirmo o contrário. Deixo-me manipular. Sim. Não existe ingenuidade. Existe uma confusão. Um medo. Imagens agarradas à pele. Esfrego-me. Esfrego-me em ti. Nesta espera. Nesta espera, visualizando-te de cigarro na boca. As tuas mãos. E não me lembro do teu cheiro. Tenho de fixar o teu cheiro. Deixas-me? Poder fechar os olhos e sentir o teu cheiro. Mas para isso tenho de deitar a minha cabeça no teu peito. Ou no teu colo. Tens de me deixar aproximar-me. Aceitar o meu corpo. Sem soluços. Sem rompantes. Sem safanões. Sem dor. Aceita. Sem me afastares, porque para existir movimento há um vem e vai. Troquemos. Joguemos o vai e vem. Vem. Vem. Vem.

Posso chamar-te de meu amor? Sim. Deixa-me usar a palavra. Sem alianças e frigoríficos. Sem fogões e créditos à habitação. Sem nada. Somente o tom. Sente-lhe o tom. Palavra grave. Começa em agudos. É assim como nós. Um gráfico. Um biorritmo. Como tu.

Hoje quero-te aqui. E amanhã. Ou depois. Esta semana. Este mês. Durante este ano. No Natal. E na Páscoa que já passou.

Virgínia


Eric Delamarre

Vermelho.
Uma caneca vermelha com café. Um maço de cigarros vermelho. Um cortinado verde. Um fundo azul.
Eu? Eu espelho-me vermelha acastanhada. Vermelha de sono. Castanha de cansada.
Recordo palavras. Sorrio. Sim, eu não existo. Não existo porque a minha existência é este pó que se agarra às calças. Que sacudimos quando entramos em casa. Que parece cinza de mortalha mas é pó de giz. Porque um dia eu quis ser mais e viver mais. Porque olhei e pensei que tinha de existir uma mudança para que tudo isto valesse a pena.

E eu não existo porque sempre me custou sentar nessa cadeira. E deitar naquela cama ali dentro. Com lençóis brancos imaculados. E sempre pensei que não queria mesinhas de cabeceira. Nem gavetas arrumadas. Caos. Ou ordem. Tentar viver assim num equilíbrio no desequilíbrio. Sim eu não existo. A minha existência é névoa, é fumo, é cinza. É o Tejo nas manhãs de Verão. É vê-los e desejar dar-lhes moedas. E pasteis de nata. Naquele sofá aqui atrás. Preto. Sujo. Foi nele. Ou não? Onde foi? Não lembro. Mas há muito que deixei de existir.

E sim. As obscenidades e palavrões intensificam. Aos inteligentes as coisas básicas sempre excitaram. Aos básicos as coisas inteligentes não dizem nada. Obrigado. Sim, tu. Obrigado. E tu. E tu. E a todos. A todos quanto me ouvem. E lêem. E não desistem. E acreditam que eu existo. Quando não. Não existe aqui ninguém. Esfumou-se. Não sou. Nada. Só existe uma música. Sempre a mesma. Ele sabe qual é. Acordo na impossibilidade de escrever sem ela. E sim. Não existo. Ninguém que exista, existe assim. É condição.

Traz-me café. Acabou. Esgotei. Bebi-o. Traguei-o. Agora come-te a ti. Quero comer-te a ti. E a ele. Como-vos. E dou-me a comer. Sim a ti. Um repasto. Devoremo-nos. Predadores e predados. Mas antes uma orgia. Uma senhora de uma orgia. Para que soltemos tudo o que temos nos intestinos. Uma orgia de sexo e fezes e urina e suor e lágrimas e sangue e membros e pêlos e esperma. Um molho de putas embrulhado. Em combustão. Ardamos aqui pois não existe inferno. Nem céu. Nem nada. Nem um um jardim à porta de entrada. Nem à saída. Não existe. Não existo.

Entendem-me? Falo-vos de vida. De vida, porque acabou o café.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Gelado


Andres Serrano

É final do dia. E espero-te. Vem. Seja o que TU quiseres.
As chaves prenderam-se na mala. Sinto o bafo a álcool da boca do vizinho que conversa ao telemóvel na janela ao lado. Agonio. No chão uma encomenda. Não há contas, nem cartas. Somente 12 degraus. Em madeira. Sujos. Entro. Espero-te. Tenho saudades da tua pele. Do teu cheiro. Das tuas mãos. Dos teus olhos. Do teu olhar. Da tua voz rápida. Do teu falar alto. Tenho saudades do meu desequilíbrio quando me olhas. Do meu tremer.

Meu Querido. Procuro um amante que me faça esquecer o teu corpo. Matas-me. Procuro um amante que me trate. Que me trate das feridas. Que me acaricie o corpo. Que me beije os lábios. Um amante que me aconchegue após vertigem. Um amante que me seque a humidade das mãos. Um amante que me arranque o teu cheiro em mim. Um amante que me recolha à vida.

É tímido. Bonito. Olhar no chão. Confessou-me que quando o conhecem deixam de querer dominá-lo. O bebé. Sorri. É tentador abraça-lo. Beijá-lo. É tentador.
Nos lábios curvos e carnudos. Nos olhos de criança. Sim. É tentador abraçá-lo. Ele entrou. Escrevia-te. De camisa preta e cuecas. Descalça. Joelhos no chão. Isso minha criança maltratada. De joelhos. Cheira-me. Cheira-me e tenta beijar-me. Fujo. Mas dou-me. Fujo. Mas dou-me. Escrevi. Escrevia-te. Ele de joelhos. Atrás. A meu lado. Até eu terminar a lembrança de ti. Até vomitar o meu amor por ti. O meu querer. O meu querer-te. O meu desejo. Aguardou. De joelhos.
Levantei-me e pedi-lhe me desabotoasse a camisa. Atrapalhou-se nos botões. Aproximei-me da luz para que os visse. Um passo atrás. Vem. Segue-me. Ele não sabe mas gosto dele. Ele não sabe, talvez não saiba mas dá-me tesão. Excita-me ele ser assim. Tímido. A querer-me.

Hoje enquanto caminhava sentia o peito inchado. Visualizava um vulto preto na minha frente. O meu peito. Grande. Enorme. Sentia o peito enorme e inchado. Nunca senti o meu peito assim. Meu Querido.

Entrei na banheira e disse-lhe para me dar banho. As minhas marcas. As que me deixaste sem ver. A esponja na mão dele sobre as minhas marcas. A mão dele que delicadamente me entontecia a pele. Um amante. Que uso para meu prazer. Para que me lamba. Para que me venha entontecida. Para que cuide da minha pele, do meu corpo. Procuro um amante. Um outro. Sim, meu querido, não me basta um. Necessito de um outro. Um outro que me foda. Me foda com mãos no cu. Lentamente. Entre todo em mim. Lentamente. Me beije o pescoço. E as costas. E os pulsos. Me lamba os ante-braços. Me diga palavras bonitas. Me acaricie o cabelo.
Sim meu amor não me basto.

domingo, 12 de julho de 2009

Trabalhos Forçados


Diana Michener - Solitaire 4

És uma chata. Quero lá saber do que escreves. Quero lá saber o que pensas ou sentes. Eu quero é foder-te. Dás-me tesão puta. Quero lá saber se ouves os pássaros de manhã e sentes o calor nos braços. Quero lá saber se gostas de ser beijada com força. Eu quero é a tua cona. E o teu cu. Quero lá saber se tens dificuldades no trabalho e se as tuas colegas são casadas ou solteiras, loiras ou morenas, eficientes ou antas. Eu quero é foder-te. Esporrar-me em ti. No teu peito, nessa tua boca, nesses teus olhos. Quero lá saber. Excitas-me. Apenas e só isso. És uma cabra que me excita. Dás-me tusa. Não era isso que querias? Não provocaste? Pois então. Agora, vais ter de mos vazar. Quero lá saber se estás apaixonada. Quero lá saber se corre bem ou mal. Quero é foder-te. Encher-te os buracos todos. Fazer-te minha. Sentir-te a espernear. Puta!

És um chato. Quero lá saber com o que trabalhas. Tu e o teu estatuto social. Quero lá saber se fazes isto ou aquilo e se nas tardes de Verão vais a esta ou àquela praia. Quero lá saber se vais jantar ali ou acolá. Quero lá saber se tens filhos, sobrinhos ou enteados. Não quero. Não quero saber. Só quero saber se te dou tusa. Fingir que me dás também, ainda que dês erros ortográficos. Ainda que os teus risinhos me irritem. Ainda que eu ache que és estúpido como uma porta. Mas quero saber se te dou tusa. É que senti-me aqui sozinha e pensei em encher o ego. Em dar um chuto para o ego. Em sentir-me desejada. E foste o primeiro a aparecer. É rápido. Basta acenar-te com a minha cona. Vês? Já estás duro? Já. Eu sei. Basta-me falar cruamente. Como eu sei. Um sonho. Um sonho. Não, não quero saber se moras em Setúbal ou Albufeira. Não sabes que tudo isto é um enorme vazio? Que tudo isto só espelha a nossa solidão? Que nem eu nem tu nos desejamos? Que apenas desejamos o sentimento de desejo? Que eu não conto? Que tu não contas? És um básico. Não sabes? Não sabes que tudo aquilo que disse é incoerente? Nem reparaste? Neguei-me a mim mesma e nem reparaste. Entrei em contradição e nem reparaste. E é fácil. É tão fácil. Mas é um pau de dois bicos. Se não vales nada, seduzir-te é nada. Se te desprezo no final desprezo-me. Destrutivo? Sim. Mas tu não sabes. Nem saberás. Os teus pensamentos estão virados para a mota que tens, para o negócio e as fodas marcadas.

Queres beber café? Senta-te.

Sou uma chata. Mania de falar em cumplicidade e amor. Em falar em afecto e foda molhada. Em dizer que não me basto. Em falar em duas faces. Em querer a medo. Em ser cona e mais que cona. Falar em sentimentos! Quem fala em sentimentos? Quem quer falar em sentimentos? De paixão! Que vómito. Qual paixão? Qual paixão? Querem lá saber da paixão. Cona e cu. Cona e cu. Partilha? Sim, partilha de líquidos. Mais do que isso? Só se for um jantar. Um dia na praia. Tudo acaba igual. Não insistas. Ou insiste. Faz como queiras. Sou uma parva. Uma chata. Uma crente. Uma utópica. Uma tonta. Uma baralhadinha dos cornos.

Vou fazer-te um prato de merda. Bosta de vaca para que comas e chores por mais. Ou preferes minha?
O alemão em minha casa. O fim-de-semana a ver filmes de scat. Merda misturada com ovos mexidos numa frigideira. As primeiras imagens. Difíceis. Depois? Depois vamos. Entendo o simbolismo mas o filme era uma festa. Sem a parte dramática que tanto gosto. Os silêncios. Os olhares. A repugnância. O ser forçada. Até nesta porcaria eu não me basto. Até na merda eu não me basto. A degradação...

Vomito-me.
Cuspo-me.
E lembro que ele escreveu lember. Lember.
Ai!

Depois veio outro que me falou em carinho. Eu quis encomendar cinco quilos mas estava ao que parece esgotado.

Vou fazer cocó. Tomar banho. Vestir-me. Sair. Cansar o corpo. Levo comigo a reciclagem.