sexta-feira, 24 de julho de 2009

no monte


Vee Speers

Ele fez o trabalho de casa. Sorrio. Porque eu não fiz o meu. Acreditei ou quis acreditar. Somos todos demasiado sensíveis. Olhamos no amor como prisão. Empurramos o afecto das nossas vidas. Chutamos, pontapeamos. E quando ele chega. Se chegar. Achamos que é suposto ser assim para sempre. Achamos que não precisamos mais de seduzir. De alimentar.

Ela tinha um caderninho forrado a papel sobre a escrivaninha. Era bordeaux. Não era suposto ela escondê-lo. Não era porque tinha-nos sido ensinado a respeitar os objectos. Os outros. Tinha-nos sido ensinado a evitar a intimidade dos outros? Talvez. Talvez tivessemos todos medo de descobrir que aquele a nosso lado... sentia. E o que sentia. Ela era uma adolescente. Eu uma criança. Ela escrevia sobre paixões, sobre sentimentos de inadaptação, sobre revoltas, medos e frustrações. Eu escrevia sobre príncipes, princesas, lavradores e charruas. O meu cadernos dizia Escolar na capa. O dela dizia nada. Era bordeaux e os meus dedos tocavam-lhe de vez em quando. Era bonito. Possuia uma textura. Abria-o lentamente para o fechar rapidamente. De seguida. Com medo. Pressentindo passos no corredor. Sabendo-me criminosa. Pecadora. Abria. Lia duas ou três palavras e fechava de novo. Tentação. Palavras a ler. Palavras compostas. Sobre ela. Escritas por ela. Por aquela que entrava em casa triste com todos, calada e saía mais alegre porque ia sair. Como se nós a fizessemos infeliz. Fazemos-te infeliz, mana? És infeliz porque existimos? Talvez ela no caderninho falasse. Talvez dissesse qual era o nosso mal. Ou o do mundo. Ou o da vida. Talvez ela dissesse e eu pudesse aprender. Saber. Tentar mudar. Tentar fazer com que ela entrasse em casa alegre. Com um sorriso. Que falasse e não se enfiasse no quarto. Talvez aquele caderninho bordeaux ajudasse. Talvez.

E numa manhã. Sozinha. Com a mãe na escola. As manas na rua. Abri o caderninho. De pé. Em frente à escrivaninha. A tremer. Mas decidida. Abri-o. Folheei-o procurando palavras conhecidas. Nomes. Os nossos. Procurando as críticas. Os nossos males. E não encontrando iniciei a leitura na primeira página. Falava nele. No rapaz que vinha de férias. Na mãe. E nas coisas menos boas da mãe. Mas só nessas. Estranho. A mãe que lhe fazia pão com manteiga e dos pauzinhos não constava ali. E falava em amor. Em solidão. Oh mana não te sintas assim. Nós gostamos tanto de ti. Tanto. E que triste. Que palavras tristes. Que solidão. Que ser-se tão sozinha. Oh mana nós gostamos tanto de ti... E poesias. Poemas e mais poemas. Bonitos. Ritmados. Tristes. Embaraçosos. Oh mana que bem que escreves. O caderninho bordeaux. Com cuidado. Uma folha. Duas folhas. Um barulho. Ai. Mas não. Continua. Devora essas palavras. Entende. Tenta entender. Tenho de tentar compreender o silêncio. O sofrimento. A dor. Aquele olhar em nós. Tenho. Faltavam poucas folhas. Deixadas em branco. Sem letras. Páginas limpas. E um coração a bater alto. Ai. Pousou o caderninho. Com cuidado. Na mesma posição. Meticulosamente na mesma posição. Tremendo. Cheia de sentimentos. Oh mana...

Dobrou a folha de papel verde texturado. Pincelou de cola uma das arestas e pressionou contra o cartão. Fez uma dobra no tecido da esquina e fez novamente pressão. Estava terminado. Um livro em branco com 10 cadernos. Cosido. Bonito. Um caderninho para subtituir o Escolar. O infantil. Um caderninho a encher de palavras. E letras. E sorrisos. E príncipes, princesas, lavradores e arados. Ou charruas. Em casa mostra-o. Orgulhosa. Que bonito caderninho. Fui eu. Fui eu. O silêncio da mana entra em casa. Desperta-a. O caderninho dela bordeaux estava terminando. O caderninho do silêncio e da dor estava acabando. Toma mana é teu. Tu precisas mais do que eu.

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