terça-feira, 14 de julho de 2009

Virgínia


Eric Delamarre

Vermelho.
Uma caneca vermelha com café. Um maço de cigarros vermelho. Um cortinado verde. Um fundo azul.
Eu? Eu espelho-me vermelha acastanhada. Vermelha de sono. Castanha de cansada.
Recordo palavras. Sorrio. Sim, eu não existo. Não existo porque a minha existência é este pó que se agarra às calças. Que sacudimos quando entramos em casa. Que parece cinza de mortalha mas é pó de giz. Porque um dia eu quis ser mais e viver mais. Porque olhei e pensei que tinha de existir uma mudança para que tudo isto valesse a pena.

E eu não existo porque sempre me custou sentar nessa cadeira. E deitar naquela cama ali dentro. Com lençóis brancos imaculados. E sempre pensei que não queria mesinhas de cabeceira. Nem gavetas arrumadas. Caos. Ou ordem. Tentar viver assim num equilíbrio no desequilíbrio. Sim eu não existo. A minha existência é névoa, é fumo, é cinza. É o Tejo nas manhãs de Verão. É vê-los e desejar dar-lhes moedas. E pasteis de nata. Naquele sofá aqui atrás. Preto. Sujo. Foi nele. Ou não? Onde foi? Não lembro. Mas há muito que deixei de existir.

E sim. As obscenidades e palavrões intensificam. Aos inteligentes as coisas básicas sempre excitaram. Aos básicos as coisas inteligentes não dizem nada. Obrigado. Sim, tu. Obrigado. E tu. E tu. E a todos. A todos quanto me ouvem. E lêem. E não desistem. E acreditam que eu existo. Quando não. Não existe aqui ninguém. Esfumou-se. Não sou. Nada. Só existe uma música. Sempre a mesma. Ele sabe qual é. Acordo na impossibilidade de escrever sem ela. E sim. Não existo. Ninguém que exista, existe assim. É condição.

Traz-me café. Acabou. Esgotei. Bebi-o. Traguei-o. Agora come-te a ti. Quero comer-te a ti. E a ele. Como-vos. E dou-me a comer. Sim a ti. Um repasto. Devoremo-nos. Predadores e predados. Mas antes uma orgia. Uma senhora de uma orgia. Para que soltemos tudo o que temos nos intestinos. Uma orgia de sexo e fezes e urina e suor e lágrimas e sangue e membros e pêlos e esperma. Um molho de putas embrulhado. Em combustão. Ardamos aqui pois não existe inferno. Nem céu. Nem nada. Nem um um jardim à porta de entrada. Nem à saída. Não existe. Não existo.

Entendem-me? Falo-vos de vida. De vida, porque acabou o café.

Sem comentários:

Enviar um comentário