segunda-feira, 6 de julho de 2009

No lugar


Yousuf Karsh

Sou eu.
Aqui.A.Q.U.I.

Grelos de nabo. Com ovo cozido. Filetes de pescada cozida. Cogumelos. Azeite. Salsa. Pimenta. Sem sal. Como tem sido os meus dias. Sem sal.
Vou morrer velha. Com a casa desarrumada e mau feitio. De carrapito na cabeça e óculos no nariz. Vou morrer velha. Inchada de amor. E de gritos. De suor e gargalhadas. Vou morrer velha e deixar-me fotografar. As rugas, as estrias, a celulite, as peles. Para que todos aprendam a amar o velho, o decadente, o vivido. Para que visualizem a beleza de uma folha seca. E vou ter amantes. Amantes novos e amantes velhos. Para que me dêem ainda o que eu preciso de saber. Para que não morra de velha mas morra velha. E vou apaixonar-me. Por um velho. E por um novo. E vou pensar que quero morrer ainda mais velha para que possa estar sempre a seu lado. E vou ser velha fumando. Vou ser velha amando. Vou ser velha excitando. Vou ser velha e uma velha rica. Vou dar migalhas aos pombos e letras aos meus cadernos. Vou ser tramada. Mal-humorada. Velhaca. E vou rir-me. Por ser tudo isso e não ser nada. Vou olhar nos novos e a alguns vê-los velhos. E olhar em mim e espelhar-me nova. Mas vou ser velha. Beber café de velha. Ter cabelos brancos e uma história. Uma só. Uma apenas. Vou esgotar-me nessa história. E repeti-la. Vivê-la. A minha história. A única que posso contar e viver.E a meu lado. Ao lado desta velha o meu amigo velho. E connosco um gato velho. Ou dois. Ou três. Ou quem sabe doze? Para que cheiremos não só a velhos. Cheiremos também a gato. A mijo de gato. E um cão. Ou dois. Para que a nossa baba caia no chão e seja lambida. E nesta velhice falaremos em como somos velhos. E em como ainda vivemos. Como é possível atravessar estas clareiras e ainda sentir? Velhos e ricos. Porque as contas bancárias espelham dinheiro não riqueza. E não existirá amante que me enterre. Nem homem que me ponha flores na campa. Serei velha. E intratável. Velha. E intragável. Para que me reste velha para sempre. Para que possa manter-me. Ainda que velha. Mesmo velha. Assim velha. E vou bater nos netos dos outros. E nos filhos. E ralhar com as crianças. E rir-me das misérias. Para depois oferecer bolos. E dar moedas. E oferecer doces. As minhas mãos serão velhas e olhando nelas lerei o quanto elas se abriram e fecharam. O quanto elas afagaram e espremeram. O quanto elas dedilharam e foderam. Mas antes disto. Antes de ser velha. Antes do Natal. Antes de tudo. Antes de mim e de ti. Antes da minha e da tua velhice. Antes de ter rugas no pescoço. Antes de me doerem as costas. Antes de cair na rua e fracturar a bacia. Antes de tudo eu quero ser tua. Quero entregar-me. Sentir-te. Cheirar-te. Beijar-te. Abraçar-te. Rir-te. Sorrir-te. Fazer-me tua. Cumplice. Puta-mor. Só assim poderei ser a velha que visualizo.

Só assim poderei ser uma velha.

1 comentário:

  1. De todas os amigos que tive foste dos poucos que nao me quispara algo. A minha alma tao velha como nova, tao perversa como iocente, sempre foi facil de agarrar ou aprisionar por uma faceta. Mas tu c conseguiste olhar para tudo. Es uma pessoa do tudo. Da ordem e da confusão, da paixão e da análise. Do orgulho e da vergonha. Aquela que ofereceu uma bengala a uma velhinha andrajosa eras tu, e mais que isso, ofereceu um sorriso. Aquela que me alerta para a dignidade de todos os seres humanos, quando o meu íntimo de escorpiao ferido, ataca cegamente os que julgo desprezar; tu defendes. Sem paternalismos aceitas. Somos todos folhas na corrente das circunstâncias. Mas do carrasco à vítima, do frágil ao poderoso, do idiota ao génio, existe um arco da condição humana. Onde estás :)

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