quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

GLS


HiroshiWatanabe -Yuka Onozawa & Ikki Tada - Matsuo Kabuki

Há uma necessidade de mudança em mim. De limpar o pó das estantes e encostá-las às paredes. De dar outra cor aos móveis. De tirar o cotão dos fios enrolados a meus pés. Mas antes disso deixa-me contar-te esta história de amor. De uma paixão surgida em noite que se fez dia. E em dia que era noite. Numa vertigem acabada numa casa quente com lençóis sempre sujos de lama e suor. Ao que parece ele desdenhava de paixões. Insegurança? Não sabemos. Sabes? Não sei. Parece que considerava tudo isso uma lamechice do pior. Ela? Ela aparentava ser feliz na solidão. Era? Não sabemos. Mas tentava. Sim, tentava. Ao que parece tentava.
 
- E aqui estamos nós olhando um no outro, demorada e silenciosamente, como se não existisse nada melhor.
- E há?
 
Há roupa espalhada pela casa. Um bafo quente a fumo. A corpos. A whisky e manchas de urina no sofá. Roncos. Gemeres. É madrugada. Dizem. Ouviram dizer. Mas tiram-se fotografias com rebocadores e dão-se beijos em seios nus de camisolas cinzentas. Numa curva. Porque tudo acontece sempre numa curva. No começo. E no final. Curva-se para que sintamos. Há esboçar de alegria espontânea. De contentamento e angústia. Felizes porque se têm. Temem e tremem. E eu gostaria de ser ela. E sou. E gostaria de ser ele. E sou. E nas promessas de banho ela entre sempre sozinha na banheira. Acorda cedo. Aprendeu a ouvi-lo ao longe. A visualizar-lhe as pernas compridas. A querer os dedos dele nela. Um desejo. Ele que aprendeu rápido a manejar clítoris e seios.
 
- Gostas de mim ainda vendo que sou também assim?
Silêncio. Mudo. Silêncio.
 
Estranho. Não há vontade em concretizar. Em matar. Em esgotar. Não há pénis nem vaginas que o permitam. Nem membros suficientes que o expressem. Não há nada a não ser dois olhos em outros dois olhos. E uma comunhão assustadora. Completa. Terrível. Ele que procurava tarefas. Ela que deixara de procurar. Numa sala de luzes intermitentes. Ele está ao longe. De camisa preta. Há dois olhos pousados nele. E um orgulho em ser daquele sorriso. E uma procura em desfazer-lhe o corpo aos estalos. Na incapacidade de entrar pele adentro. De desfazer o corpo encontrando outro para que se reveja. E veja. E o veja. E sinta as expressões que perde quando se perde. Porque quando nos perdemos fechamos os olhos e deixamos de ver os outros olhos.
 
- Sinto-me vivo.
- Morro.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Quinta do Rei


Manuel Alvarez Bravo

Existiu um olhar. Breve? Não lembro. Mas sei que existiu. Um segredo contado com dedos de pés descalços. Uma manta de beijos sobre a minha pele. A tua. A que me clamava. Eu que te via alto e criança. Depois as nossas bocas oralizaram. E revelaram-se de dentes e línguas teimosamente irmãs. Uma descoberta. Foste. És. Uma descoberta. Foste. És. Um desejo. Um desejo que dou por mim a alimentar como se fosse menina.

Existe um acto. O de me lavares as mãos. E o corpo. E a mente com vinho tinto. Um acto que quero até ao entardecer dos nossos corpos. Uma poesia. Um bocejo. Uma vontade de te matar nos meus braços. Ou entre as minhas pernas. Ao sufoco. Agora. Já. Aqui.

Chove lá dentro. Abraça-me.

Há uma criança que trata os pais pelo nome. Que fala sobre os raios de sol como se fossem físicos. Materiais. Lembro-me dela. E de mim. Comer papo-secos ao sol de Dezembro. Camisolas de lã verde e branca. Gatos no peito e nos beirais. As flores e as amoras. Beijo a minha irmã. A do sinal no queixo.

É Alvarinho? Fresco. Neste aguardar por umas pernas que se torçam nas minhas.

Fodo-te.

Minto. Minto a quem quero. Bem. Quero bem. Muito bem. demasiado bem. Minto sabendo que minto. Minto porque o meu corpo quer. Quer. Deseja. Minto. Sinto-te.

Das minhas torneiras jorram jactos de água quente para me aquecer a pele. Sinto-me a amar-te. Por vezes. Em dúvida. Por vezes.

Nada substitui a escrita. No entanto, não consigo escrever.

Vou.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Príncipe do Calhariz



Diane Arbus


É no teu olhar que me perco enquanto procuro o que pensar.
No fogo. Na mente. Nas mãos. Nas axilas. Tudo arde. Arde em maré de vermelhos e laranjas.


Tusso.

Eu digo-te e oriento-te. Mas eu não sou eu. Apercebes-te? Sim existem dias em mim que a voz se torna entorpecida. Desculpa. 

E tu sorris-me como se eu fosse alguém especial. Importante na tua vida. E eu sinto-me pequena e inútil. Inútil como as toalhas de renda feitas pela minha mãe. Que têm simbolismo mas que eu acabo por nunca usar. Desculpa.

Há uma música que toca. A que me deste a conhecer e nem sabes a importância da mesma. Eu que te escondo a minha compulsividade e me mostro... equilibrada? E há dor em mim. Sentes? Não sei. Eu que te quero bem e te trato como um miúdo nesta minha arrogância. Torno a pô-la? Deixa ouvir o que se segue. Desculpa.


Lábios nos lábios. E uma vergonha em mim. Perguntas-te porquê. Eu respondo: eu não sou eu. Somente isso. Eu não sou eu. Sentes? É outra. Não a conheces. Esta é a completa. Mentira. É a alucinada. Inadaptada. Torno a pôr. Desculpa.

Quantas vezes mais? As que quisermos. As que conseguirmos. As que eu conseguir. Desculpa.

Telefonas e questionas-me. E eu que quero que sejas tu a decidir. Eu mulher preguiçosa. De momentos. Cansada de responsabilidades e eficiência. Decide. Porra, decide tu! Desculpa.

Choro. Desculpa.

Que grande merda... um dia escreverei algo interessante. Desculpa.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Pedrouços


Paolo Ventura
 
É no escuro. Neste escuro da luz diurna que me entretenho com os objectos que me deste. Aqueles que não querias mais porque te ocupavam espaço no peito. Os que deixaste à porta de casa. Encostados à tinta cinza azul esmalte. A palidez da minha na tua pele. A que tu chupas e mordes. Como se fosse sempre o último dia. É estranho que não te conheça. Eu que viajei em círculos. Lambo-me.

Empurro com a mão. Empurro. E empurro-me.

Lembro do tempo em que os meus passos seguiam aparentemente sozinhos. É o cansaço que me invade e não sei se me sente ou morra. Peço-te ajuda nesta ilusão que quero construir. Façamos de conta que somos felizes. E satisfeitos. Que estamos bem com a vida. Dançamos. Samba? Qualquer coisa de abanar a anca. Porque ancas como as minhas querem-se movidas. De encontro a ti. Rebolo-me.

A cara triste de uma mulher feliz. Vi. Hoje. De manhã. Os olhos apagados. As sardas morenas descoloridas. Porque são sempre os maridos tão chatos? E elas sempre tão prontas? No Inverno construímos casinhas que destruímos na Primavera para que passeemos nus na chuva de Maio. Dá-me flores que eu sorrio. Nos lábios dela húmidos perdi-me. Porque ela não sabe escolher. É corpo. Em abstracto. Sabes do que falo? Calo-me.

- Alguém tem paciência para estudar este ser?
- Eu... Eu creio que terei professor.
- E quem és tu?
- Meu nome é Kitana.
- Pois é teu... Kitana.
- Obrigado, professor.
Despedaço-me.

Que abafado. Está abafado. E será naquela casa amarela. Numa rua curvilínea. Num rua estreita. Com carros de polícia. Sem polícias. Somente carros. Brancos e azuis. Ela vai dizer-lhe que é tudo mentira. Que tudo já estava escrito antes. Que ela não inventou. Está incapacitada de inventar. De criar. Vai dizer-lhe que já existia tudo aquilo. E tudo isto. Mas animemos. Animemos. Cantemos gospel. Vestidos de túnicas brilhantes. E óculos de massa. Antes fumamos qualquer droga. Para compor. Compor um quadro que se quer ritmado. Dançante. Risonho. Abstraio-me.

São nove horas. Quando forem dez vais telefonar-me a dizer que tiveste um acidente. Que tens as duas pernas partidas. Que não te consegues mexer. Que seguras o telefone no chão. Que os teus dois braços caem-te no alcatrão. Que te dói apenas a cabeça. Um névoa densa na cabeça. Não te mexes. Espreitas. Movimentas os olhos. Estás estirado no alcatrão quente. Está quente. E são apenas dez horas. O meu número é o último da tua lista. Pedes ajuda. Eu oiço-te. Tenho vontade de te ver engessado. De te bater engessado. De te castigar engessado. De te fazer depender das minhas mãos. De teres de me pedir tudo. Comida. Água. Jornais. TV. Xixi. Cocó. Tratar-te como a um deficiente. Como a um bebé. Vingar-me. Vingar-me por seres assim. Bater-te. Venho-me.

sábado, 28 de novembro de 2009

O Optimismo da moca


Self portrait 3 - Albano Ruela



Existem gestos maquinais. O tirar as embalagens. O  pão integral alemão com sabor a cerveja. O frio da porta que se abre. E tudo se faz maquinalmente. Como se soubesse que tem de ser assim. Como se soubéssemos. O ler a mensagem. Uma leitura. Sim. Manda-me mensagens. Tu que julgas conhecer-me. Ou não.

Vou inspirar-me.

Guardo uma foto. Guardo-a porque me diz muito. Para um gesto de perfeição. Que não existe. Que nunca existirá porque em mim não há perfeição. Somente a sua procura. Ou o seu oposto. A procura do seu oposto. Degradação... Rebeldia? Guardo-a porque perante ela silencio-me. E tem poder sobre mim quem me silencia desta forma. Eu mulher de silêncios. E comunicações. Orais. Corporais. Fluídas. De fluídos. Eu mulher de partilha tenho silêncios invasores e perturbantes. É o passado que constrói. E o presente. Fruto.

Um relógio e dos meus olhos escorrem lágrimas. Como numa despedida. Obrigado mãe. Obrigado porque tenho de ti os dois objectos que mais me fazem lembrar-te. O relógio e o cadeirão. E perdoa-me. Perdoa-me este sentir. As pessoas. Envolvem-nos. São o melhor e o pior do mundo. Beber olhando nas suas fotografias e sentir quão absurda e ingrata é a nossa vida. De encontros. Felicidades. Momentâneas. E no entanto  abrangendo tudo isto, o amor. Obrigado mãe.

Eu sou a filha pródiga. O ter visto e passeado pelo mundo deu-me uma leveza que as minhas irmãs não tem. Mas em séria preocupação. Eu sou leviana. Existe uma aceitação em mim que exaspera. E desespera. Eu não aprecio surrealismo. Prefiro o realismo. E o neo-realismo.

Um dia se voltar lá... fico lá. Morro lá. Viverei segundo as leis da rua. E da vida. O meu pai deixará de me falar. E a minha mãe morre. Lentamente.



Há um copo de leite. Cheio de vinho branco intragável. E duas pessoas tentam pisar um risco amarelo grosso traçado no chão preto cor de ardósia. Em alcatrão para ferir os joelhos. E é na gravilha que todos caímos. Espetados com o queixo entre as pedras. Feridos. Hirtos. 


- Vais pisar?
- Vou. Que queres que eu faça? Se...
- Mas... Sim. Eu sei. Mas... e se de repente aparece...
- Desvio-me. Ou mando-me e termino de uma vez por todas com isto.
- Vou sentir saudades.
- Fazes café. E lembras de como dormia com os lençóis a taparem-me a cara.
- Chorarei.
- Sim. Chorarás. Eu sei. 
- Porque a morte te fascina assim tanto?
- Porque a vida é... completa.
- É? Não sinto. Às vezes... às vezes sinto-te tão longe. Tão longe de tudo. De mim. De nós. De ti mesma.
- Vem lá. Piso!
- Não!
- Piso...
Ouve-se um ruído. Metálico. Os travões do metropolitano que pára, travando. As portas abrem. De dentro saem pessoas. De olhar em... na frente. Em baixo. Onde olham? De onde vêm? Para onde vão? De dentro saem máquinas. De olhar em frente. Em outros que não nós. Nunca nós. Saem e vão. 
- Entremos.

sábado, 21 de novembro de 2009

Lingerie


Elmer Batters

Uma montra iluminada no interior. Do lado de dentro reproduz-se uma luz amarela. No seu exterior um homem jovem acena. Olha para dentro e agita o braço. Esta montra encontra-se no final de uma rua perpendicular. Que eu desço. Não consigo deixar de sentir. A beleza da luz da montra, do espaço loja que encerra. A luz que se esbate num corpo jovem que acena perante a mesma. Chegar-me e dizer-lhe:


- Belo. Que Belo.
Agradecer-lhe pela beleza que me provoca.
- Obrigado.
E de seguida pedir-lhe desculpa por ser assim.
- Desculpa.
E num passo. Vestida de preto. Calçada em ténis. Sair dali. Sentindo com a música que me invade. A escrever. A partilhar. O momento.
Belo.

Um pontapé no olho. Doi-me o nariz. Vês? Não estou enterrada. Ainda. Apenas me encovo. Lentamente.


Existe um homem vestido aparentemente de mulher. Perguntamo-nos porquê. Mas o olhar dele revela... silêncio. Está sentado à beira de uma gare. Vê passar os comboios. Não tem dinheiro para o bilhete. E ainda que o tivesse, gastaria em rebuçados e caramelos de fruta. Porque ele está sentado. De pernas dobradas em calças de fazenda cinza. Os sapatos destoam. São de pele castanhos. Com mossas do tempo.

Ele caiu. Numa pista de dança vazia. Enquanto eu na sanita da casa-de-banho me encostava aos azulejos brancos e adormecia na dormência da minha existência. Doía-lhe o corpo todo. Mais o peito. Acordou pensando que tinha sofrido um AVC. Ou um enfarte. Eu ri-me. Ri-me da noite que nos engoliu e nós deixámos. Porque necessitamos que nos traguem. E mastiguem. Ou engulam sem saborear. Ainda que gostemos de beijos com sabor a amêndoas.

 

Existe um quadro pendurado na parede. Diz "Boys make good pets". Sorrio.

domingo, 15 de novembro de 2009

Lastro


Otto Dix



Tem as pernas nuas. O tronco nu. Na mão um cigarro arde. Está sentada numa sanita. Branca. Simples. Numa casa-de-banho cheia de objectos e frascos. De tecto às riscas azuis. A lembrar uma tenda de circo.Ou de praia. Fuma. Na sua frente a cortina do banho. Que mexe de vez em quando. Como se sentisse que de alguma forma alguém se escondesse por detrás da mesma. Fuma. Aparentemente está sozinha mas de repente solta uma gargalhada. Irónica? Cínica? Não se entende. Parece infantil. Meio ingénua. Mas ficamos na dúvida. Talvez não seja assim tão simples. Movimenta-se. Mexe o rabo na sanita e adapta-se. Olha na barriga. Na borbulha que lhe cresceu de noite. Na barriga. Com o dedo de unha partida espreme-a. Não rebenta. Desiste. Olha entre as pernas. Nos pés. No papo entre as pernas. Sorri. Sorri para a cortina branca da banheira. Eleva uma mão. Está sozinha?
- Não é uma questão de afecto.
Pára. Debruça-se sobre o tronco.
Olha nos pés. Arranjados. Minimamente tratados. Nus. Despidos. De verniz do Verão. De feminilidade produzida.
- És tu.
Olha no espelho. Onde só verá... a cortina branca da banheira.
- Eu não sei. Não sei o que fazer... a minha vida? 
Onde deveriam existir certezas. Há esta pasta de dúvida e angústia colada à pele. Onde não procura. Procura? Ser eficiente. Produtiva. Independente. Neste mundo que a cala. E silencia.
- Eu não sei...
Repete. Repete-se. O dedo da unha quebrada raspa a pele da perna esquerda.
Olha nos pés. O tapete branco muda de cor. De vermelho a amarelo. Atira o cigarro para a sanita. Levanta-se. Vira-se. Perante o manípulo estragado do autoclismo baixa o tampo da sanita. Desiste. No andar algo estranho. Como quem reaprende. Como bebé.
O seu corpo está estendido na cozinha. O corpo que há momentos fumava cigarros na cozinha.
Olha no seu corpo no chão. Olha no seu corpo de pé. Ambos estendidos.
No ar. Ambos seus.
Onde ir?

gabardines azuis


Nina Glaser

Silencia-te. E olha-me. Não precisas. Não precisas de falar. De me dizeres que nestas noites te apetece correr mundo e fugir dos dias castanhos. Olha-me. Sorrio-te. Entendimento. Identificação.


Olho nelas. A pequena é quem manda. Quem coordena todas as outras. As penas são lustrosas. De um castanho creme brilhante. Quando passa, a outras afastam-se e dão-lhe passagem. Debica o milho com a assertividade de um tigre na selva. Chamo-lhe de Laura. Laura porque a minha avó se chamava de Laura e era assim meio bege, meio loura. E tinha nariz de galinha chinesa. Como o da minha irmã. Gavionas. E belas. De testa grande. Larga. Até às orelhas pequenas. Tão pequenas que nos rimos todos. Mas tu ouves?


Nesta minha capoeira só há um galo. De mês a mês é abatido. Ensanguentado para bem da comunidade. E das minhas manhãs de milho e ervas. Eu que sempre adorei galinhas e julgava que elas punham muitos ovos ao dia. Cuspo. A Idalina come o meu cuspo cor de cola. A Idalina é preta. Ou semi-preta. Tem olhos tristes. A Idalina. E boca de lampreia. Uma galinha com boca de peixe. É assustadiça. Por isso gosto dela e a protejo. Vinde a mim os fracos que eu tenho missões na vida.


Olha-me nos pés. Nos pés nus que pisam caca de galinha. Estão apodrecendo com as ervas e flores amarelas que trouxe quando aqui me sentei. Neste galinheiro imundo com cheiro a palha seca e a fezes. As sementes germinam. E eu neste calor de cola perco-me observando estas senhoras. Loiras. Morenas. Ruivas. Poedeiras. Galiformes. Fasianídeas. Olho. Nestas aves que não sabem voar. Nem aprendem. Nem querem. Nem pensam nisso. Debicam. Debicam o que lhes dou. Conto-lhes uma história. Com intervalos curtos. Dou-lhes a ouvir a Marianne que é linda. E danço. Bamboleio-me de encontro à rede.


Visita-nos a Carmen. De peito inchado e carnudo. Ri-se de mim. E de nós. A Carmen que só quer amor na vida. E fondues de chamas que só se apagam com sopros coloridos de vinho. Ah Carmen se fossemos meninas ganhavas-me na macaca. Como me ganhas na kizomba e no altar com bacias de água benta. Os gatos. As galinhas. E os leitões que colocas dentro dos bolsos dos casacos. Tu de mamas mãe. Eu de coração grande para te beijar. E adorar. És mãe. Parece que foste mãe outra vez. Desinteresso-me. Olho na Idalina. E na Carminda cor de barco velho na praia. Feliz a Carminda. Que se passeia e encontra o que as outras não viram. Ainda que procurassem. Existem atracções. E a Carminda atrai o que se esconde. O oculto. Distraidamente uma puta com sorte.


Há uma alfândega aos meus pés.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ursos de peluche e carros de corrida



Charles Gatewood


Serve-me. Quero que me sirvas. Que te vergues quando passo. Que beijes o chão que piso. Que me adores e chores. E sofras. E implores. Por uma palavra. Por um gesto. Por um aceno. Meu. Ajoelha-te. E chora. Quero que chores. E te doa. Que te doa este meu silêncio. A omissão de palavra. E o meu sorriso em ti. Desespera. Por não saberes porque rio. Ao que se deve a minha gargalhada. Abro as pernas. Cheira.

Não te conto o que faremos. Faremos. Não te digo que voaremos. Voaremos. E os suspiros. Ai. Os suspiros. Há quem julgue que isto é sadismo. Pobres. Há quem pense que é doença. Ignorantes. Há quem na sua vidinha de casa, trabalho nos olhe cansados. Sorri. Sorri porque te vou maltratar. Porque te vou humilhar. E rebaixar. Porque te vou subjugar. E desconsiderar. Cresces... e eu molho-me em lagos de nevoeiro espesso.

Fecho o livro e deixo-te lá dentro. Preso entre a página vinte e dois e vinte e três. Comecei agora. Deste-me sono. As mulheres na literatura são bem mais interessantes. Porque falar no feminino é descrever o mistério. Tu sabes que não existe imaginação em mim. Que o que descrevo. Penso, vivo e sinto. Ai louca. Louca de círculos em círculos bombardeneanos.

Segurei-lhe a cabeça enquanto vomitava na carpete cinzenta. Os cabelos estavam macios. Macios como os meus dedos de unhas sujas na sua testa. Incentivei-a a deixar-se ir. A não recear sujar-me. Nem a mim, nem a carpete cor de nada. O cheiro a azedo penetrou-me e arrepiei-me. Ergui-lhe a cabeça com dificuldade. Os meus lábios pediam os seus. Encostei o tronco. O meu ao dela. Beijei-a. Limpei o vomitado à palma da mão e cuspi na carpete cor de noite embriagantemente triste.

Prótese. Empresta-me a tua prótese.

Vou oferecer-te um almoço. No final fodes-me e cortas-me as pernas e os braços. Deixas o meu tronco sobre o sofá preto. Num orgasmo...

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Vodka com sabor a baunilha


Ruela - Anarchic Freak Show

 
Vês aí esses caderninhos? De letras miudinhas... Tão miudinhas que não consegues ler. Vês? Eu leio. Eu consigo. Por vezes. Por vezes consigo ler. Consigo lembrar-me de como era. Eu. E o mundo. O meu. Porque falamos sempre do nosso. Esta noite sonhei que morria. Que me baixava para tirar cogumelos do congelador e o wok me caía na cabeça, matando-me. Morte absurda a minha.


Dias. Noites. Dias. Noites. E mandas-me dançar? Mas eu quero é chorar. Chorar estes dias e estas noites.

Cogumelos. Seitan. Cebolas das pequeninas que têm um nome que não lembro. Pimenta. Alho. Alho francês. Rebentos de soja. Couves de bruxelas. Verde. Quero verde. E champanhe que me deram para me embebedar sozinha. É triste beber sozinha. Não? Sim, talvez não. Desde que tenhamos copos lavados. Não te rias. Eu falo de coisas sérias. Por vezes torna-se difícil ter copos lavados. Ainda que eu tenha muitos copos. Raramente parto um. Eu parto pouca loiça. Sabes? Sabes. Eu sei que sabes.

Sim, é verdade, ando cansada. Cansada de pessoas. E radicalismos. Todos tem opinião formada sobre tudo. Todos. Andam todos tão bem mal informados. Tão bem partidários. E apegados a causas que os fazem clicar num botão dizendo "Eu apoio". Que apoio! Eu apoio aqui sentado de barriga sobre os joelhos. Eu sou contra a morte dos animais, dos bichos, das mulheres, dos idosos, das criancinhas, dos besouros, das carochas, dos pénis com um só testículo. Vamos todos ver verde. Verde! Gritam! E agora vamos todos ver vermelho! Vermelho! Gritam! E nunca puseram os olhos no amarelo...

Dá-me um cigarro.

Eu não sou diferente. Apenas me deito e sonho em ser. Ou estar. Ou morrer.

Tenho os pés gelados.


A minha mão de unhas arranjadas e cigarro entre os dedos aqui pousada excita-me. A minha mão é bela. Neste momento. Só por este momento. Consegues sentir a beleza desta pausa? Que nada tem a ver comigo. Tem somente a ver com aquela mão, aquela mão pousada com um cigarro entre os dedos neste teclado. Aquela mão que é minha. Mas podia ser tua. Ou dela. Sente. Por vezes a beleza atinge-me de tal forma que sinto que nada mais há a partilhar. Uma impossibilidade.

Chamaram-me de padeira de Aljubarrota. Um logro. Que logro!...

Vou jantar. Vens? Tenho vinho. E um beijo de seguida.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Black Demon



Nina Glaser


Caem-me as penas. São as folhas. Como as folhas. Voam ao mar. E sobem neste corrupio de cabelos e cachos encaracolados de algo que já foi meu. Sentes o meu cheiro a baunilha? Foi de pêssego e tâmara que fui feita. Que dizes? Não sei. Mas sei que todas as noites penso em dó e ré. Em mi e fá. Penso em cânticos e encantos. Sem dor. Nem pudor. O meu corpo é teu. O corpo que tu queres torturar. Nas horas e horas de passagem. Lembras como foi a viagem? E em como adormeceste sobre o meu colo enfarinhado de suor e ressacas? Foi há uma vida. Há um século de teimosia entre nós. Que se foda dizes tu. Que me foda digo eu. E fodo. Não sentes. Mas eu sinto. Tenho a cona ardente. Xiu.


Andas descalço. De pés ensanguentados. Doente. Com fome. Miserável. Dás-me dó. Ajudo-te. Dás-me dó. Dou-te uma nota. Dinheiro. Toma. Não. Já, já não. Quero foder-te. Sim, eu mulher limpa, imaculadamente promíscua, cheirosa, com casa, e roupa, e unhas arranjadas, quero foder-te. E vou foder-te. Pago-te. Pago-te para te foder. Para me baixar e enterrar em ti e nesse teu membro sujo e malcheiroso. Não tenhas medo. Apenas vou foder-te. Vais arfar. E gritar. Eles que se fodam. Sim, eles que se choquem. Ou excitem. Que se fodam. Eu já nada tenho a perder. Não é uma questão de imagem. É uma questão de... ser. Ou não ser. E sou. Que se foda. Sou.

Deita-te na pedra fria porque está fria. Cheiras mal. Muito mal. Adoro-te. Fazes-me pena. Sempre que te dei dinheiro culpei-me. Porque é fácil dar-te dinheiro. Ainda que me faça falta. Dou e fujo. Dou e choro. Dou. Dou e culpo-me de dar. De comprar a minha paz com cinco euros. Com vinte euros. Perdoa-me. Perdoa-me mas eu nada posso. Nada posso contra este movimento de pele e carne que me consome. Contra este trânsito que aflui entre as minhas pernas. Pia. Poderia ser pia. Escolhi ser puta. É-me mais fácil. E existe o riso. Ainda que o silêncio do chicote seja em mim uma névoa. Já te falei nesta névoa? Não. Sei que não. Apenas chorei junto aos teus pés. Aos que trazias ensanguentados. Aos que da última vez vi dentro de um par de ténis. Um alívio, sabes? Que alívio eu senti. Por te saber bem calçado. Mas agora chupo-te. Chupo-te para que sejas feliz. Uma única vez na vida serás feliz. Inteiramente feliz. Porque eu assim quero e assim tenho certeza. Arrogante. Sim. Valoriza o que eu quero enquanto te chupo. Estás no céu. Ou no Inferno. Onde queiras. E eu sou tua. A tua mulher. Numa cama confortável. Quente. Aninhados.

Tens sapatos mil. E roupa. Amanhã viajas. Atravessas o Atlântico e vais à praia dançar com baianas ou índias. Pagas. Tiras do bolso e pagas. E eu sorrio. Daqui. Deste lado do mar sorrio-te. Quero-te. Quero-te tanto bem que me enterro em ti. Enterro para que te possa matar. Não tenhas medo. Afinal a vida é esta e isto. Sentes o quente? O quente das minhas entranhas. É uma vertigem. É. Sou. És. Isso. Cavalga. Pobre mendigo. Tens fome? Pois come. Come-me.

Estás quase? Sim, eu sinto. Quase. Quase. Não pares. Quase. Quase. Sim. O paraíso feito mulher, e pernas, e membros, e braços, e mãos, e lábios, e... e tudo. Sim. Isso.

Tuf tuf

O silêncio de uma vida. O ruído de uma arma.


Tuf tuf


Descansa. Estás no paraíso.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Pedras


Kevin Bubriski

Existe um palco. Nele um homem sentado numa cadeira. A seu lado, a cerca de três metros, um outro homem está sentado numa outra cadeira. A cadeira onde está sentado o primeiro homem de vez em quando range. Os dois homens não se olham. Olham para a sua frente. No publico sentado na sua frente. Os dois homens estão sentados como se desconhecessem a existência um do outro. O primeiro homem veste um casaco de malha bege que pende do seu lado direito. Do lado onde o segundo homem se encontra sentado. Se o segundo homem o olhasse poderia talvez sentir a leveza com que o casaco de malha pende do corpo magro do primeiro homem. Mas o segundo homem não o olha. Olha no publico. Olha em nós. Onde me encontro. Onde me encontro sentada. Onde me sentei depois de descer o corredor escuro com carpete vermelha. Sei que é vermelha porque lhe sinto o cheiro a mofo. Porque assim quero que seja. Porque assim a imaginei. Olho nos dois homens que olham em nós. Tento ver se os seus olhos me olham. Não consigo. Está demasiado escuro e os homens demasiado parados. Observo a gola da camisola de lã azul do segundo homem sentado no palco. A gola está subida mas enrolada, desajeitadamente dobrada sobre o pescoço. Tenho vontade de endireitar a gola do segundo homem sentado no palco. De lhe dar um jeito. Tento abstrair-me da gola e olho nas pessoas que sinto sentadas em ambos os lados. O publico a meu lado faz parte da cena. Também ele se encontra parado e imóvel. Por vezes oiço ranger uma cadeira. Tento verificar se é a cadeira do primeiro homem. Por vezes é. Noutras o som vem de trás de mim. Alguém. Talvez um outro homem se tenha sentado numa outra cadeira que range da mesma forma que a cadeira onde está sentado o primeiro homem sentado no palco. Olho nos dois homens. Nos dois homens com mãos caídas entre as pernas. Olho e aguardo. Aguardo que algo aconteça. Que digam algo. Que se levantem. Que comecem. Que se olhem. Aguardo. O publico a meu lado aguarda? Não sei. Olho no homem sentado a meu lado. Vestido com um casaco de malha igual ao do primeiro homem sentado no palco. Espreito e verifico que a ponta direita do casaco de malha do homem sentado a meu lado pende da mesma forma que o casaco de malha do primeiro homem sentado no palco. Com a mesma leveza pende do corpo magro. Estranho a coincidência. Procuro ver quem se senta além do homem sentado a meu lado. Dificilmente enxergo um outro homem com uma camisola de lã igual à do segundo homem sentado no palco. Tento ver como se encontra a gola da camisola de lã azul do homem sentado ao lado do homem que se encontra sentado a meu lado. Sim, está desajeitadamente dobrada, enrolada à semelhança do segundo homem sentado no palco. Estranho. Mais uma coincidência. Penso que o anormal seria não estranhar. Aperceber-me de tudo isto e apenas descrevê-lo seria desconcertante. Mas não consigo deixar de estranhar. E mais estranho ainda , quando verifico que o homem sentado na fila oposta à minha possui um casaco de malha bege igual ao do primeiro homem sentado no palco. Com uma ponta que pende para fora da cadeira da mesma forma que o primeiro homem sentado do palco. Visualizo a ponta do casaco e tenho vontade de lhe tocar. De sentir a malha da ponta que pende do casaco do homem sentado na fila a meu lado. Ergo-me e devagarinho dou dois passos ao encontro do homem da fila a meu lado. Espero que ele me olhe. Mas o homem sentado na fila ao lado daquela onde eu estava sentada mantém o seu olhar firme no palco. Olhando os dois homens sentados lado a lado. Olhando na sua frente. Sem sequer se aperceber da minha presença. De um corpo, o meu, a seu lado. Baixo-me e de cócoras toco na ponta do casaco de lã bege do homem sentado de lado na minha frente. Sinto-lhe a maciez. As malhas. O cheiro da roupa de Inverno e do vento. Agarro na ponta do casaco do homem sentado e levantando-a coloco-a sobre o seu joelho.

Estou sentada no palco. Olho no publico sentado na minha frente. A minha cadeira range.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Água


Paula Rosa - Meta For

- Falta-me algo...
Não sei o que te diga. Silencio-me.

- Falta-me algo.
Interrogo-me.

- Falta algo...
Sim. Eu sei.

- Algo que...
Que não sabes. Que não sabemos. Saberá alguém? Esta insatisfação presa aos cabelos que despenteamos para sentirmos a vida. Como se a vida se pudesse desgrenhar e mover com o vento. Como se a velocidade fosse condição à vida. E o sentir tivesse de ser constante. Às pernas só é dada a condição de movimento. E do repouso tem-se medo.

- Sinto que...
O afecto nos faz falta. Mas nunca nos bastamos com ele. O amor nos preenche, mas deixa sempre espaço vazio. Os filhos crescem. Os pais morrem. Os amigos zangam-se e esmorecem. As fodas são somente fodas. E as namoradas perdem-se entre o trabalho e os copos.

- Há algo que...
... gostarias de fazer. Mas o quê? O que falta? Faz-se tudo sem saber. Faz-se nada. Inicia-se sem dúvidas e no final em gargalhada a questão o que estou eu a fazer? Bebe-se um copo. Embebeda-se a mente. Fuma-se drogas, embala-se o corpo. Mas que raio...

- Falta-me algo.
Procura deus. Deus é pequeno. Deus não enche quem não o quer. Aliena-te como te for possível. Eu... eu não te sei responder.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Lavanda


Veloso - Tentação da carne

Eu conto-te. Conto para que saibas. Ainda que nada haja a conhecer. Uma circunferência. Um ciclo iniciado após uma volta. Conto-te. Existia uma insatisfação que lhe corroía os ossos. O abrir a porta de madeira da casa. Aquela mancha junto à fechadura da porta. Esperava-o. Confrontava-o. Com a noite. A noite passada dentro das paredes encerradas por aquela porta de madeira. Um beijo nos lábios. Um sorriso. Ou um caminhar para lá. Para longe do corpo dele. Distraidamente sempre para longe. Porque há sempre coisas a fazer. A ajeitar. A arrumar. A delinear. A projectar. Dois corpos que se movimentam num mesmo espaço. Com pequenos. Leves. Breves toques. Uma mesa e quatro cadeiras. Duas cadeiras ocupadas. E o silêncio. O silêncio mesmo quando não existia silêncio. Um olhar na toalha branca. Imaculada porque se quer imaculada. Diz. Sim. Diz-me como te correu o dia. Quem? Sim. Fala-me do teu dia. O meu? O meu... Sorrisos. Breves. Um beijo de fugida. A loiça. O sofá. Pousa a cabeça no seu ombro. Mais um beijo. E dois corpos sentados lado a lado. Ele loiro. Ela morena. Distantes. Distantes pelo enjoo. Pelos dias e dias de toques. Pelos dias e dias de proximidade. Poderiam ser interrompidos com choros. E bebés. Mas não. Apenas o silêncio do noticiário da televisão. E um nevoeiro pairando sobre o que já não era.

Rompe-se a corrente.

Ela era vento. Era chuva. Era Inverno. Era fogo. Era mar. Ela era riso. E sorriso. E viver. Era ruiva. E morena. Era o sofá desarrumado. E o pavimento sujo. Era migalhas na cama. E manhãs atribuladas. Era fugida. E desassossego. Era vertigem. E suor. Era televisão desligada. Era música em silêncio. Um gemido. Um olhar. A cumplicidade. Era ele. E era ela. Eram outros. Que se passeavam por ela. Era ciúme. Era medo. Prazer. E prazer. E amor descomplicado. E amor porque te quero. Amor porque sim. E sim. É assim. Amo-te. Amo-te. É desejo. Que não quero perder. E saturar.

Corrente inexistente.

Hoje ele senta-se no sofá. Os dois loiros. Em frente ao noticiário. De cabeça contra o ombro. E um sorriso. No sofá branco. Depois do jantar na mesa com toalha vermelha. Imaculada. Depois do beijo de fugida. E dos dias. Do Conta-me como foi. Sim? O meu? Nada de especial. Quem? Ah ela. Ah ele. Sim. Sim. Temos de ir. E fazer. Sim, tens razão. Tenho sono, vou deitar-me. Tudo bem. Não te preocupes. Ele chora. Eu vou lá. Sim. E no rosto a segurança de sabermos qual a nossa infelicidade. E nas mãos as referências apreendidas e aprendidas. No cabelo o sabor de quem provou. Na boca a esperança de um dia voltar a ser. Um retorno.

Nada. Nada. Nada mais a acrescentar. Conto-te. Contei-te. Parte.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

sopas dispersas


Charles Gatewood

A minha pele está transparente. Aguarda. Aguarda-te. Dos meus intestinos o mundo quer expulsar-me. Eu comigo dentro. Corro. Sinto o odor do teu cheiro. Intenso. Dou-te uma mão e aguardo que a música comece. Os meus pés dançam parados. E toda a música é absorvida pelo meu corpo. Danço-te. Na sombra. O meu apetite não matarás. Ele vive do alimento e nunca através dele surgirá o seu desaparecimento. Sou uma marioneta. Nas mãos de quem me quiser. Nas tuas. Ou nas dele. Movimentem. Movimentem-me. Da minha boca apenas silêncio e este sorriso. Subo ao palco empurrada por ti. Sento-me. Deito-me e durmo. Empurras-me com um pé. Rio. Poderia gritar mas aprendi a ser domada. E dominada. E submetida. E imobilizada. Revolve-me a pele. E a carne. O restante revolvo eu. A essência. Que te dou e retiro.

Ela quer que eu aponte. Baixo o dedo. Baixo a mão. Baixo o braço. Acontece. Digo-lhe. Acontece. Ela implora-me para que aponte. Baixo o dedo. Baixo a mão. Baixo o braço. Roga para que uma palavra seja dita. Expulsemos os nossos demónios através dos outros. Através dos demónios dos outros. Olho-a. Mas a minha natureza é de entendimento. Penso em contar-lhe que um dia abandonei tudo. Retirei-me da vida e dormi. A minha pele virou cinzenta e as minhas ancas largas encolheram. Os espelhos deixaram de me reflectir e não havia como chorar. Contar-lhe que o meu pai delira e se ira contra mim.

Vou despir-me. E vestir-me. Tenho vontade de ser actriz. Enfiar o corpo num vestido coleante preto e escorregadio. Enfiar nos pés os sapatos pretos mais altos que tenho. Ser grande em altura. Prender os seios um contra o outro de forma a que visualize o rego olhando na frente. Colar o cabelo à cabeça e colocar a peruca morena comprida. Sombrear os olhos de negro e prata. Esticar as pestanas ao infinito. Dar cor vermelha às faces. Matar-te porque me desejas e eu nada posso fazer a não ser esvair-te em sangue e suor.

Existe uma tesão em mim. Esta tesão que me faz andar. E caminhar. E deitar-me numa marquesa. Existe tesão em mim. Sentes? Sinto.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Chuva de lava


Ludmila - Couple

A porta de vidro estava fechada. Premiu o botão da campainha. Os cabelos caiam sobre os olhos dificultando a visão mas teve preguiça de os retirar. Click.
- Quem é?
- Sou a 77479077. Estive cá o mês passado. Simulei um enforca-mento. Agora queria...
- Só um momento.
A porta divide-se em duas que recolhem deslizando para os lados. Entra. A sala de cor metálica prata está escura e dificilmente vê o balcão onde anteriormente fora atendida. Era uma tarde de Sexta. Saíra do trabalho mais cedo. Faltara novamente a corrente eléctrica. Um novo atentado. Mais de cem feridos. Estilhaçados pelas pedras do buraco que os protegia.
A sala ilumina-se e uma mulher de casaco de fazenda castanho entra na sala por uma porta atrás do balcão.
- Hoje fechámos mais cedo. As festas começam amanhã...
- Sim...
- ... Não é época para se querer morrer. Todos estão eufóricos - diz sorrindo.
- Não será, responde torcendo os dedos na camisa.
- Mas que pretende? Não tenho ninguém neste momento que possa atendê-la.
Hesita. Não é época para se querer morrer. Existe outra mais indicada?
- Eu pretendo simular o choque frontal...
- Não pode voltar para a semana?
- ... mas não o condicionado. Quero um real.
- Como real?
- Não pretendo o vosso cenário. A garagem. O condicionamento. A experiência em ambiente fechado. Quero lá fora. Na estrada.
- Mas sabe que é ilegal?
- Sei. Mas disseram-me...
- O que lhe disseram? Aqui só fazemos simulações legais. Estamos registados e certificados.
- Sim... mas pensei que pudessem. Só esta vez.
- Mas... já viu o nosso catálogo?
- Sim. Já sou vossa cliente há uns meses. Como lhe disse o mês passado simulei o enforcamento...
- E não gostou?
- Gostei. Muito, mesmo. Mas quero... preciso... sinto que... pensei em fazer algo diferente.
- Mas tem outras... experiências. Como lhe disse o nosso...
- Eu sei. Já simulei afogamento... a pira... a tortura de Santa Ágata, a de Santa Luzia, e ainda que através de uma outra agência... a overdose e o ataque cardíaco... tenho gostado muito de todos os simulacros, mas ouvi falar no choque frontal real e senti-me seduzida.
- Olhe. Peço-lhe. Volte para a semana. Falaremos melhor e de certeza que conseguiremos arranjar-lhe uma experiência de morte que a agrade. Certo?
- Certo...

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Casablanca


Albano Ruela - Ente

O enterrador estava pronto. Tinha escolhido um local em que sabia que dificilmente seria incomodada. A maioria dos que utilizavam o processo solitário fazia-o em locais bonitos. Praias, montes verdejantes, pequenos paraísos de cor e luz. Não uma fábrica velha junto a uma pedreira abandonada onde imperavam os cinzas e a rocha nua espreitava em tons escuros num monte dilacerado a picaretas. Não tomaria o comprimido. Tinha-se decidido a sentir. Sempre a sentir. O solitário não lhe seria indolor mas sentiria algo. E o último pensamento seria dele. A ele dirigido. Quando a terra batesse sobre ela fortemente. Quando o seu corpo recebesse o impacto daqueles quilos de terra seria nele que pensaria. Nele que não a amara. Nele que não a quisera. Nem a ela, nem ao seu amor. Sufocaria lentamente? Não sabia. Não procurara informar-se. Chamar-lhe-iam de doida caso explicasse o que pretendia fazer. Não existia relatos de quem não tivesse tomado o comprimido. Não existiriam relatos de nada. Quem experimentava o enterrador não ficava para relatar. Daí não se preocupar em saber como se programava o enterrador. Seria manualmente que o faria. Bastava-lhe puxar a alavanca com o cordel que trouxera para o propósito. Cavar um buraco onde deitar o corpo. Colocar a terra do buraco sobre a plataforma do enterrador. Deitar-se no buraco. Concentrar-se no céu escuro. Puxar o cordel. E cairia a noite. Para sempre. Sempre. Questionava-se. Existiria espaço à tosse? A convulsões? Ser enterrada viva. Sentir-se a morrer. A sufocar. Espaço a gritos? A arrependimento? Desde que os pais lhe tinham morrido não existia motivo para se deixar ficar. Os entusiasmos não morriam. Apenas tinham deixado de se fazer sentir. Era um zombie. E na cabeça apenas uma morada. A morada dele. Dele. Seguira-o. Visualizara-o de longe. Sonhara em que ele voltaria e lhe diria que a amava. Que a queria. Que não conseguia viver mais sem ela. Que a desejava como ela a ele. Muito. Tanto. Tanto... uma história de amor de tirar o fôlego. De romper com o mundo e tudo o que nele conste e se conheça. Querera tanto que ele fosse louco por ela. Que obcecasse por ela. Que a quisesse acima de tudo. De qualquer forma de ser. De tudo e de todos. Um amor de enjoar. De novela. De conto e de história. Mas não. O enterrador estava ali. Pronto para carregar com a terra. A terra a depositar no buraco. A retornar ao local de origem. Cavar a própria sepultura. Morrer e ser enterrado onde queremos. Um direito difícil de adquirir mas conseguido ao final de muitos anos de lutas. E a ela a quem nunca interessaram as lutas, usufruía agora desse direito. Punha-lo em prática. Começa a cavar. O sol esconde-se por detrás do monte violado. As mãos pequenas posicionam-se ridiculamente sobre a pá. Não tem pressa. Poderá descansar sempre que queira. Não há mais pressa. Após a decisão tudo é pacífico. Existe uma serenidade no corpo que há muito não sente. Deixou de transpirar de ansiedade. Deixou de se interrogar o que fazer. Simples. Paz. Não há orgasmo que lhe valha. Nem coito que deseje. Nada. Não há fome. Não há sede. Nada. Vácuo. Um negro de luz. Retoma o trabalho. O processo é lento. Ainda que tenha escolhido o melhor local este encontra-se repleto de pequenas pedras. Restos da mãe rocha. Anoitece. Decide parar. Não sopra uma brisa. O vento nega-se a fazer sentir. Nada se faz sentir. Nem o luar. Somente as estrelas presenciam aquele corpo coberto de pó. Deita-se sobre o pequeno monte de terra já retirado. Sobre a plataforma do enterrador. Dormir sobre a própria campa. Sobre o coveiro da campa. Adormece. Em sonhos ele. Sempre ele. Maldito. Amo-te. Amo-te. Porque não me amas? Porque não me amas se eu amo-te tanto? Deverias amar-me. Deverias achar-me especial. Deverias sentir-te privilegiado. Deverias... Porque não me amas se eu te quis amar. E consegui. Amo-te. Porque não me amas se me mostrei. E revelei. E... amo-te. Vomito-me de amor por ti. Sente-me. Amanhece. Lentamente. Tão lentamente que parecem dias. Dias sem noites. Somente um sol nascente. Eterno. Ali. Pairando baixo no horizonte. Agarra na pá e prossegue. Que horas serão? Não sabe. Com ela apenas o seu corpo e o vestido imundo que traz colado aos seios e às pernas. Não escreveu nenhuma carta de despedida. Não avisou ninguém. Será um solitário não registado. Mais uns dos que agora começam a serem descobertos em grande número. Mais um que calou o destino. Mais um. O solo ergue-se. Finalmente ergue-se e queima. A pele morena tinje-se de suor. Termina o buraco. Ou pensa que o termina até se deitar nele e constar que não existe espaço para o corpo. Só de lado. Pensa em retomar. Ri-se. E porque tem de ser de costas? Porque não podemos enterrar os mortos de lado? Porque não pode ser ela enterrada de lado? Que de lado fique. É importante? Afinal... é especial. Ri-se. A gargalhada ecoa na parede da montanha dilacerada. Sente-se feliz. Ou o mais próximo que conhece da felicidade nos últimos tempos. Ata o cordão à alavanca. Entra no buraco e deita-se. Magoa-se no braço esquerdo que bate numa pedra. Não faz mal. Que importância tem a dor naquele momento? Não pensa. Não pondera. Nada a pensar. Não existe espaço para um último momento. Para uma última reflexão. Para um momento de silêncio. Para compadecimento de si mesma. Puxa o cordão. A plataforma ergue-se. Devagar. Mais lentamente do que previra. Eleva-se a cerca de um metro e meio, gira sobre si mesma e a terra é atirada com força sobre o buraco. As medições foram bem feitas. Ainda que a olho. Ainda que sem grande método. Sente o impacto da terra sobre o corpo. O cheiro do pó. O escuro. Estranhamente não se arrepia. Não se engasga. Não sufoca. Somente escuro. Um escuro terrível. Um escuro e um cheiro a terra intensos. Estranho. Não morre. Não sente a vida a esvair-se. Não sente nada a não ser um imenso escuro e um imenso cheiro a terra. Aguarda. Quanto tempo passa? Quanto? Já deveria ter sufocado. O corpo não sente o peso da terra. Estranho. Sente-se envolvida. Quase que poderia afirmar, deliciosamente envolvida. Nada. Aguarda. Ri-se. Sim. Consegue rir-se. Vem-lhe à mente a imagem do seu egocentrismo. Especial. O querer ser especial. Para alguém. Para ele. Pois seja. É-o. Não morre. Porque não morre? Grita. Quer morrer. Porque não morre? Quer sufocar. Não há direito. Não é justo. Ela só queria calar a mente. Só se queria calar. Só queria morrer sentindo. Sente. Mas não morre. Apenas o escuro e o cheiro forte a terra lhe fazem companhia. Nem a pedra sob o braço esquerdo faz notar a sua presença.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Branca


Keiko Iwamuro - Gold Fish Cow and Egg

Molhei o cabelo. Com gel puxei-o para trás. Para que me vejas o olhar. Um olhar de testa e queixo. De nudez facial. De risco grosso preto nos olhos. De olheiras cinzas. Vesti-me como me disseste. Como me pediste. Com murmúrios. Como pedes. Sem jeitos nem considerações. Com esse teu egoísmo de entranhas em risos estridentes. Não existia esperança. E a vontade era de não seguir. De me deixar estar sentada. De te olhar e desprezar. De te gozar. Porque podes ser desprezível. E estranhamente tentador. Visceralmente ser pensante de olhar escuro e profundo. Em mim. Agora voas. Em direcção oposta a mim e eu ainda sinto o teu cheiro e a tua saliva. O vómito provocado e a urina no sofá são as lembranças que me deixaste. Porque sem que o saibas é a tua intimidade que procuras em mim. Porque existe magia em nos degradarmos. És batida forte. E de estar que me transcende. Em comum temos este sermos nada em querermos sentir tudo. Ressaco pelos buracos que ficaram por encher. E da boca saltam ardores de estômago. O meu desejo sobe-me via intestinos. Um dia cago sobre ti. Para que me devores. Não chorarás mais a perca da mãe. Serás impala na tua África. Espreitas-me e eu enlouqueço-te. Em esticões de pescoço. Abanares de cabeça. É. É. Posso ser irreal. Ou surreal se fechares os olhos e os semi-abrires. Viro verde e roxo. Pinto-me de cores e cheiros. Abro-me e estico-me. Rebento em convulsões de saliva, urina, vómitos e fezes. Dou-te novas paletas. Esventra-te. Sei que não acreditas. Nem mesmo naquele momento sou real. Dispo-me do papel e mantenho os sapatos que me elevam acima de ti. Onde estás? Vieste tarde. Culpo-te porque vieste tarde e agora estamos sem tempo. Limpei a pele já sem ti. Lavei os pecados que não sinto. O silêncio era esmagador. As tarefas automaticamente engolidas em névoa. Que silêncio aterrador. Intenso. Um buraco. Em mim. Foda-se. Digo foda-se. Foda-se.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Bomba


Mário João Alves Lino

Olha querida, olha lá para fora. O sol nasce sobre todo o nosso horizonte. Nasce para ti. Nasce porque tem de te iluminar. A ti a esses teus caracóis loiros. Olha querida, olha. Olha e devora mais este bife a nadar em gordura. Olha e come. Quero-te monstro. Quero-te enorme. Quero-te imóvel. Sem conseguir andar. Sem estrutura para aguentar o teu peso. Dependente de mim. Como querida, come. Come o que te dou. Tudo o que te dou. O meu afecto em forma de batatas fritas. O meu amor em pudins de leite condensado. O meu carinho em bacon estorricado. Come meu amor. Come. Quero-te grande. Grande como minha mãe. Grande como a deusa mãe dos homens. Grande. De seios imensos onde me perco. Que tento agarrar e se escapam entre os dedos. De mamilos ovo estrelado. De refegos imensos. Descai sobre essa cama. Posiciona-te para os próximos anos em que tratarei de ti. Só precisarás de mim. A mim que te alimenta. E te limpa. E te consola. E te ama. Mas come querida. Come. De forma a que as tuas pernas não dobrem. Os teus braços se afastem do corpo e eu me perca nesse amontoado de carne e banha. Porque te adoro. Porque te quero minha e somente minha. Fotografo-te querida. Memorizo para que possamos ver e rever. O último dia em que andaste. O primeiro dia em que te limpei o rabo. Come minha querida, come. Quero-te dependente. Quero-te minha. A minha montanha. Onde me perco. Onde me perder. Tratarei de ti. Não temas. Amo-te. Desejo-te. Um desejo insaciável de grandeza. De pregas. Pregas que toco e revolvo. Que endireito e lavo. Afastar com as duas mãos uma nádega para que te limpe. Quero ter de procurar em ti o buraco da cona. Ter que me afundar nesse teu corpo. E revolver. Nadar. Em busca do paraíso perdido. Em busca das origens. De onde saí. Por onde entrei um dia em força. Por onde quero entrar para me esconder. És minha. Serás cada vez mais minha. Caloricamente amo-te. Amo-te. Tanto, que não precisarás de nada. Somente de mim. O filho pai. Na saúde e na doença. Na cama. Nessa cama de onde não irás mais levantar. Porque não necessitas. Porque o mundo se deita a teu lado. Come, meu amor. Come. Engole o meu mundo. E o teu. Consome-me. Consumo-te. Come, minha querida. Come. Devora. Mulher gigante. A minha. Mulher mãe. Minha mãe terra.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

botas da tropa


Albano Ruela - Target

Aldeã. Podes chamar-me de aldeã. Ainda que calce estas botas pretas. Ainda que vista estas calças. E esta t-shirt. Podes chamar-me de aldeã. O meu cabelo ainda tem os jeitos do lenço que tirei da cabeça. Ontem. E a minha pele ainda cheira a ervas e trigo. Da minha boca ainda vem o cheiro pálido e agreste do leite acabado de ordenhar. Os meus braços mostram as marcas do sol nos pomares. E as sardas do peito tem a cor do vento nas videiras. Aldeã. Chama-me de aldeã. Sente a aldeã em mim. A que não tem medo de insectos, bichos rastejantes, aranhas e ratos. A que come fruta com casca e ouve rock progressivo. Industrial em cearas de milho. E a ford azul bebé em curvas de campos em pousio era uma vertigem. O fumo. O Pedro cigano que me dava sacos de erva gargalhada. E os charutos cubanos fumados com palitos debaixo de figueiras roxas. Sente os caracóis que rastejam na minha cabeça. E o arranhar das patas dos escaravelhos a descer pelas pernas. Tenho carraças atrás dos joelhos e dou-lhes de comer. Nos bailes deixo-me levar pela música e como amêijoas. Nos pés as botas. Nas pernas nuas um tecido esvoaçante chamado de saia. O amor pelos vestidos. E pelo vento. Nas ancas largas de quem podia parir. No corpo de mãe. Ogiva em infinito. Aprendi a lançar o pião e a magoar a cabeça dos dedos com os abafadores. Sim. Sou esta. Sou também esta. Chama-me de aldeã. A dos beijos nos pombais abandonados. E dos dias da mãe com flores roubadas num jardim alheio. Da lama nas botas e das amoras nos bolsos. Suja. Porca. Molhada. A trovoada no corpo. A tempestade que despenteia. Uma ilusão estas estantes. Eu sou aldeã. Gosto andar descalça. De calejar os calcanhares na gravilha e nas pedras. De ter o cheiro do jasmim nos dedos. Do queijo seco ao sol. E do barulho da passarada interrompido pelas motorizadas. Meto ervas na boca. E chupo. Sugo. Contraio os músculos contra o tronco de árvore abatida. Salto desajeitadamente a vedação do vizinho e oiço os tiros. Roubo morangos. E couves por divertimento. Não te iludas com o ipod. O meu sotaque não engana. Sou aldeã. Li fotonovelas italianas com legendas em brasileiro. E banda desenhada pornográfica encostada à adega onde me deito. Os meus dentes escurecem com o vinho. E do cimo do monte grito ao eco. Sou Pã sem flauta. Sou aldeã. Chama-me de aldeã.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

bolotas alentejanas


Frantisek Dritikol - Dancers


É uma nudez. Uma nudez. Uma insatisfação à qual sorrio. Não existe cura mas trato-me. As unhas crescem-me. Não as como. Estou em dieta de unhas. Estou em dieta de homens. Estou em dieta. Mentira. Há um silêncio lá fora que entra pela janela. Apodera-se de mim. Eu que danço aqui sozinha. Uma valsa. Uma valsa de silêncio em mim. Vivo esperando um dia. Ansiando um dia. De partida. De ida. De ir. E ir. E estar lá. Lá onde quero estar. Na areia entre os dedos do pés. No sol em mim. No meu corpo largo. Enorme. O meu. O que me pede. Pede-me calor. Sol. Pede para sentir dedos diferentes. Dedos em forma de raios de luz.

Amo-te apenas porque não te pude amar.

Visto-me de preto. Mas na corda tenho o vestido cinzento. E o vermelho. E o azul. Prontos. Prontos. Para entrarem pela cabeça e me cobrirem o corpo. E rio-me. Rio-me de mim. Sou uma desculpa esfarrapada. E faço de ti uma outra. No querer. No querer sentir faço de ti um deus na terra. Tu que és ordinário. Eu que sou vulgar. Mas assim perco-me. É mais fácil. Saber-me perdida é procurar. É tentar encontrar. A mim. A ti que já deixei no caminho. As canas são altas. E eu sou pequena. Sempre fui. Sou vigarista. Vendi-te um sonho e comprei gato por lebre.

O meu filho. Lírico. Da boca palavras bonitas. Daquelas que só leio quando abro o dicionário. Daquelas que oiço de dez em dez anos. Lírico. A ervilha dos monstros negros e das fadas loiras. Das relações caladas. E mal resolvidas. Dos ressentimentos porque são melhores que nada. Dos silêncios porque temos de alimentar as emoções em nós. Dedilha. O meu filho dedilha em mim. E os olhos são profundos. De homem. Se me afasto vira o menino que eu pari. Que saiu de entre pernas. De barba. Já com barba. Ruiva. Brincamos. Sim. Empresto-te as minhas pernas. E a boca. Brinca. Brinca. E chama a ti todo este brinquedo grande. Como se sempre tivesse sido teu. Estranho a virilidade. A do riso. A do absurdo. A mim chamaram-me nomes. Uma gargalhada.

Existem duas almofadas pretas que têm de mudar de posição. Porque uma loira de cabelo escorrido, oleoso, nauseabundo, assim quer. Que seja. Que seja como dizes loira com cabeça de frigideira.

Há sangue entre as minhas pernas. Desenho na face pinturas. Com sangue. Que seca. E parte. E estilhaça. E na música procuro esventrar a carne. Alface, delícias do mar, queijo fresco. Queres almoçar comigo hoje?