quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Pedrouços


Paolo Ventura
 
É no escuro. Neste escuro da luz diurna que me entretenho com os objectos que me deste. Aqueles que não querias mais porque te ocupavam espaço no peito. Os que deixaste à porta de casa. Encostados à tinta cinza azul esmalte. A palidez da minha na tua pele. A que tu chupas e mordes. Como se fosse sempre o último dia. É estranho que não te conheça. Eu que viajei em círculos. Lambo-me.

Empurro com a mão. Empurro. E empurro-me.

Lembro do tempo em que os meus passos seguiam aparentemente sozinhos. É o cansaço que me invade e não sei se me sente ou morra. Peço-te ajuda nesta ilusão que quero construir. Façamos de conta que somos felizes. E satisfeitos. Que estamos bem com a vida. Dançamos. Samba? Qualquer coisa de abanar a anca. Porque ancas como as minhas querem-se movidas. De encontro a ti. Rebolo-me.

A cara triste de uma mulher feliz. Vi. Hoje. De manhã. Os olhos apagados. As sardas morenas descoloridas. Porque são sempre os maridos tão chatos? E elas sempre tão prontas? No Inverno construímos casinhas que destruímos na Primavera para que passeemos nus na chuva de Maio. Dá-me flores que eu sorrio. Nos lábios dela húmidos perdi-me. Porque ela não sabe escolher. É corpo. Em abstracto. Sabes do que falo? Calo-me.

- Alguém tem paciência para estudar este ser?
- Eu... Eu creio que terei professor.
- E quem és tu?
- Meu nome é Kitana.
- Pois é teu... Kitana.
- Obrigado, professor.
Despedaço-me.

Que abafado. Está abafado. E será naquela casa amarela. Numa rua curvilínea. Num rua estreita. Com carros de polícia. Sem polícias. Somente carros. Brancos e azuis. Ela vai dizer-lhe que é tudo mentira. Que tudo já estava escrito antes. Que ela não inventou. Está incapacitada de inventar. De criar. Vai dizer-lhe que já existia tudo aquilo. E tudo isto. Mas animemos. Animemos. Cantemos gospel. Vestidos de túnicas brilhantes. E óculos de massa. Antes fumamos qualquer droga. Para compor. Compor um quadro que se quer ritmado. Dançante. Risonho. Abstraio-me.

São nove horas. Quando forem dez vais telefonar-me a dizer que tiveste um acidente. Que tens as duas pernas partidas. Que não te consegues mexer. Que seguras o telefone no chão. Que os teus dois braços caem-te no alcatrão. Que te dói apenas a cabeça. Um névoa densa na cabeça. Não te mexes. Espreitas. Movimentas os olhos. Estás estirado no alcatrão quente. Está quente. E são apenas dez horas. O meu número é o último da tua lista. Pedes ajuda. Eu oiço-te. Tenho vontade de te ver engessado. De te bater engessado. De te castigar engessado. De te fazer depender das minhas mãos. De teres de me pedir tudo. Comida. Água. Jornais. TV. Xixi. Cocó. Tratar-te como a um deficiente. Como a um bebé. Vingar-me. Vingar-me por seres assim. Bater-te. Venho-me.

Sem comentários:

Enviar um comentário