sábado, 23 de janeiro de 2010

Um homem nu num sofá preto com nódoas


Shadi Ghadirian


Há um homem que ouve os filhos passarem na rua. Ele ouve. Eu sentada a seu lado não oiço nada que não o som de fundo do computador ligado. Ele ouve e levanta-se. Acena à janela. E eu olhando-o por detrás de um candeeiro lembro-me de filmes italianos com crianças ranhosas que chamam pelo pai babado. "Que queridos" diz olhando no vidro. E sim, são. Tem a cara das crianças felizes e despreocupadas. Das crianças que são levadas à escola por pais atenciosos e saem da escola pela mão de uma ama e uma empregada. Sim, são queridos.
 
Há uma casa que se queria arejada. Uma corrente de ar a entrar pelas janelas e saindo pelas portas em direcção ao céu. Em vez disso tem pilares metálicos segurando o tecto. E um homem ausente.
 
Uma mulher canta. Tristemente. Canta tristemente. Uma mágoa que se apodera do meu regaço sem rosas. Que fala em peixes e em nascimento. E uma loucura de lágrimas corrida percorre-me o corpo excitado pelo meu amante que joga poker.

Coloco uma música para ti. Saberás que é para ti ainda que não te diga? Ainda que me cale. Que oculte a tua importância no meu coração e na minha cabeça. És o meu abismo de silêncio. Aquele a que me dedico quando te olho. Ou olho no lado. No nosso lado. Na nossa lateral de desarrumação de móveis e loiça. De pó pelo chão e copos por lavar. Ainda assim o teu sorriso permite-me escrever. Ainda assim cantando. Sim, cantando, escrevo.

 
"Bajo la sombra de un payande".

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Poker de cartas


Shadi Ghadirian


Larga da casa partida. Foge. Vai. Corre. Não olhes para trás. Vai. Não pares. Passa. Passa por esse canto. Por essa rua de casas rosa. Por essa travessa de casas amarelas. Vai. Não pares. Não jogues esse jogo de revés. Ou joga. Joga olhando-me nos olhos como quem não vê. Ou como quem mente. Mente. Sorri e mente. Ilude-te. Não? Não.

Há um gato perdido na pradaria. Acha-o. Beija-me.

Falo-te nos tempos do álcool etílico. Do estômago com fome. E das farturas comidas debaixo de toldos sujos. Falo-te. Ouves? Falas-me de amigos. De família. De tratados de justiça. De bebedeiras de insanidade. Falas-me.

- Regressa por essa estrada.
- Por aquela?
- Não, pela do lado. Essa leva a nada.
- E o que é nada?
- É... não se sabe. Não sei.
- Obrigado.

Vou fazer-te um poema.
Embriaga-me e fode-me. Ou lambe-me. Mas não me deixes a escorrer das pernas.

- Como estás filha?
- Estou bem. E o pai?
- Bem. Pena não teres cá vindo no fim-de-semana...
- Sim... pai. O trabalho... e precisava de descansar.
- A Céu fez língua e esteve cá um circo.
- Sim...
- Pensei em ti. Em como poderias vir cá mais vezes. Não precisas de trazer nada...

- Talvez... numa outra altura pai.

No tempo dos patinhos com rodas existia um homem que falava em Napoleão e nas conquistas romanas. Falava em tesouros escondidos e conventos abandonados. Falava em nós. De uma forma mentirosa. Maravilhosa? Iludida? Adoro-te. Mas não consigo perdoar-te. Como se fosses uma sina. Ou um fado. Ainda assim perdoa-me.

Levo no saco uma fortuna. Na saca que me acompanha quando dobro o braço e ela se encosta às ancas e se movimenta com as minhas pernas. Uma fortuna. Um valor incalculável de... nada.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Neve entre as pernas


Eugène Atget

Há algo que se mexe nas minhas costas. Sinto mas não olho. Evito olhar. Com medo de te ver. Que sejas tu. Afinal não estás aqui e eu sinto-te. Mas algo mexe. Que mexe atrás de mim? Que se mexe? Quem se mexe? És tu? Tu que não estás. Serás? Não sei. E nesta dúvida sento-me. De costas. Sempre de costas. Para que não me assuste olhando nos teus olhos. Para que não gema quando o teu olhar cair em mim. Sento-me e mantenho-me assim de costas. Afundo-me na cadeira. Tacteio os braços de madeira. Sinto a idade dos mesmos. Levemente. O meu sentir está nas minhas costas. Está na parte detrás de mim. O soutien prende-me os seios e eu quero respirar. Quero tirar o soutien. Quero poder despir-me em isolamento. Intimidade. Mas algo se mexe por trás de mim. És tu?
 
Há um segredo.
 
Culpa.
 
Lentidão.
 
Gin tónico.
 
No andar abaixo do meu uma mulher embriagada canta canções da Colômbia. No andar acima dela uma mulher com vontade de estar embriagada senta-se a uma mesa. No andar em frente ao meu um casal ama-se. No andar em frente ao deles uma mulher deseja amar. No andar abaixo do meu uma mulher discute com um homem. No andar acima uma mulher vive sozinha.
 
Cantemos. Em coro. Em coiro. Cantemos.
 
Há dias que a minha obscenidade atinge picos de loucura. E hoje. Somente hoje. Só por agora. Ejaculava-me no cu e lambia-me.
 
Agora. É agora.