terça-feira, 30 de junho de 2009

Não irei para casa


Imogen Cunningham - Twins with mirror

Existe uma chávena sobre a mesa. E junto à chávena de vidro sobre a mesa, uma mão. Uma mão pequena e gorda pousada na mesa branca ao lado da chávena. Existe um envolvimento entre a chávena e a mão. Tocam-se. Eu olho e penso em tirar uma fotografia. A mão descansadamente largada ao lado da chávena harmoniza com a espuma que escorre no vidro. Mas a mão torna-se invulgarmente feia. Retiro a mão. A chávena isola-se. Perde-se e perde. A fotografia deixa de existir como um momento e passa a ser objecto. É-lhe necessária a mão. Recoloco-a e encontro-lhe beleza. Sim, teria de ser com esta mão. Nenhuma outra mão lhe daria este sentir de gente, de descansadamente cansada.

Tenho sono. Muito sono. Estou cansada. Muito cansada. E fecho a porta de casa sem lá ir. Porque não posso dormir. Porque não durmo. Porque ainda que o corpo estale, e se encolha, e gema, e tropece, a mente não lhe dá descanso.

Satura-me ser máquina fotográfica. Satura-me ser máquina de escrever. Satura-me que o meu olhar dirija ao cérebro mensagens de escrita, fotografias. O corpo ausente e a mente pairando deixam-me esta sensação de ser director de fotografia. Em todo o processo intervenho por minutos ou segundos e saio.

...


Christian Vogt - Sabine

Perseguem-me. Os olhos. As mãos. A boca. Perseguem-me. Tudo aquilo que não cheguei a conhecer é o que me persegue. A voz é difusa. Ou não. Se pensar nela junto ao ouvido. Num sussurro. Ai. Aquela imagem pela metade. Estás bem? Como poderia estar mal. Desde que te conheci virei luz e sal e água e vento. Lembras-te de como era antes? Antes de nos tocarmos? Era tudo igual. Era como se o mecanismo do nosso relógio estivesse parado. Um relógio. Não fiz por querer. Eu não sabia. Era de noite. Estava escuro. Creio que ninguém me via. Poderiam ouvir-me mas não ver. Eu gritava silenciosamente. E apareceste. Ai.

A janela está aberta. Entra vento pela janela. Tenho um horizonte. Verde. Verde árvore. Verde Verão. Verde calor. Mas o vento ensina-me.

Traz-me uma prenda embrulhada em papel azul cetim com laço de tecido.

Não fazes sentido.
Alguma vez fiz?
Quem sente, muitas vezes não faz sentido.

Acordar. Escrever. Deitar. Ouvir. Trabalhar. Escrever.

Esta noite vou soltar-me no escuro. E empapar-me em luzes e café e serenatas e ruas.

Não fazes sentido.
Não.
Não faço sentido.

Elas

- Quem é?
- É ela.
- Oh pá...
- Que queres?
- Pá... mas ela ou a outra?
- Ela. Creio. Sim, pareceu-me ela.
- Pergunta.
- Pergunto o quê?
- Se é ela.
- Pergunto a ela se ela é ela?
- Sim.
- E se não for?
- Logo se vê. Preciso é de saber...
- Se for passo-te?
- Não. Se for não. Só se não for.
- Ok.

Emmanuelle

- Fui convidada para a inauguração do novo canal Hot.
- Vês? Eu disse-te...
- O quê?
- Que és parecida com a Silvia Kristel.

Silêncio


David Hochbaum

Há um silêncio terrível dentro de mim. Total. Decomposto em partes que se me colam ao corpo.
Silêncio. Um silêncio de morte. Uma parede branca. Fujo e escondo-me em frente a uma parede branca.
Para o sentir. Este silêncio em mim.
Um minuto. Dois minutos. O tempo que possa. Envolvida neste silêncio.
Para a eternidade em frente daquela parede branca. Ou de outra. Branca.
E na eternidade eu ali naquele silêncio.
Ela era silêncio.
Eu tenho-o dentro de mim.



S
I
L

Ê
N
C
I
O

É


Diana Michener - Solitaire

As minhas pernas moviam-se. Eram dados passos. Mas a calçada que pisava era sempre a mesma. E ao lado corria um cenário com Lisboa. E eu andava. Podia correr, mas andava. E olhando para o lado visualizando Lisboa parecia que quem andava era ela. Eu mantinha-me parada. Como num tapete rolante. As casas brancas e amarelas. Os telhados, as pessoas sentadas nos bancos de jardim. Eu imóvel. E quem passava passava numa tela. Eu imóvel. E quem estava, estava numa tela. Eu parada num turbilhão de pensamentos. O fumo pairando na água, o tal. A tal névoa entre os meus olhos.

Olhei para o lado oposto da tela e vi o bairro com pessoas sentadas nos degraus das portas. Fumando cigarros. Conversando. E eu parada, imóvel. E lembrei-me das vezes em que parada me tinha sentado ali. Fumando cigarros. Esperando. Esperando pela noite. Ou pela madrugada. Ou mesmo a manhã. Esperava. Esperava que algo mudasse. Não eu. Algo exterior. Eu mexia-me mas apenas porque a tela se deslocava.

E ele chegava e levava-me a beber. Bebíamos.

A morena não estava lá hoje. Não estava sentada à esquina. Eu passei e espreitei. Senti-lhe a falta. A falta do sorriso. Do Bom Dia. Do olhar mel. E sorri. Ainda que parada sorri. Sou uma mulher de sorte. Ainda que parada. Atraio beleza. E riqueza. E tudo o que é bom neste mundo. E atraio as moedas que coloquei na máquina para comprar bilhetes. Deu-me os bilhetes e devolveu-me o dinheiro. Obrigado máquina. Sentiste que eu hoje precisava de um carinho.

E o que é isto? O que é isto?
Não sei.

É.