sábado, 29 de agosto de 2009

Eu não sou tu


Daniel Weinstock - mujer

Os sapatos deixei-os onde viste. Estão ali. Junto ao sofá. Há... há quantos dias? Quantos? Não conto. Não conto. Só conto histórias. E estórias. E conto contos. Contos de fodas. Sim fodas. De entrar e sair. De conas. De cus. De caralhos a apontar ao céu. Baralhado? Não? Óptimo. Agora vou estender roupa.

Vou entrar no cofre e sentar-me no sofá. Contigo. No sofá rosa. Ou no vermelho. Vou beijar-te e apalpar-te os mamilos que não tens. Vou esticar-te as peles. Pronto. Eu cedo. Eu cedo. Porcaria de água que me trouxeste. Sabe a cadáveres. Sim, sabe a mortos. Os mortos tem este sabor. Já sodomizei uns quantos. Rio-me. Pecadora.

Não sei se tenho saudades tuas se da forma como era quando te amava. Do melhor que transparecia em mim. Do que fazias despoletar em mim. Mas sinto-te a falta. Ontem chorei. Não por ti. Não por mim. Porque... porque não gosto de perder. E perdi. Perdi porque afinal sou ainda mais pequena do que julgava. Não consigo dar o que queres. Não consigo. Seria violentar-me. E eu não consigo violentar-me assim. Só bêbada. E o álcool deixou de fazer efeito em mim. Depois do etílico que me ardeu no estômago. B. De bicho. B. De bicho homem. B. B.

O sol na minha pele tem sido uma carícia. O sol virou meu amante. É ele quem me dá prazer. Me beija o pescoço. Os lábios. Me aquece. Se faz sentir. O sol tem sido meu amante. O meu melhor amante. Nestes dias de sol sinto-me preenchida. Por ele. Quando o sinto. Quando saio para comprar alfaces. E queijo fresco. Sinto-o nas costas quando fecho a porta. E sei que lhe sou única. Os que se sentam na esplanada em frente não o sentem como eu sinto. Ainda que debaixo do mesmo. Ainda que ali durante horas. Os meus minutos de caminhar são nossos. Fode-os. Ama-me. Fodo com outros mas amo-te a ti sol. Eu que não consigo foder com quem amo.

Chega de palavrões. De obscenidades. De sexo. Falemos em afecto. Comecemos nos nossos pais. As referências. E ele ali ficou. A discursar. Eu deslizei e fugi por baixo da mesa. Tinha uma toalha azulão. Gatinhei e ainda tropecei em dedos enfiados em tiras bronze. No bar comi o empregado. À bruta. Comi-o. Engoli-o. Só deixei uma unha apodrecida sobre o balcão. Agora estou aqui cheia e não consigo arrotar. Mas os barcos passam no rio e eu começo a sentir-me feliz. Afinal todos eles deixam rasto.

Fumas?

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Playboy e o tio da Paula


Albano Ruela Pinho - The Bride


Sim. Sim. Sim. Sim. É o que queres que diga? Pois digo. Digo. Digo sim. Sim. Sim. É isso tudo. Afinal somos todos tão competentes. Tão eficientes. Tão modernos. Tão humanos. Tão profissionais. Tão comoventes. E evidentes... E corremos. Como corremos. Para nada. Porque corremos? Porque comemos à pressa? Porquê? Para que o mundo funcione? Mas o mundo quer lá saber de nós. O mundo não precisa de nós pra funcionar. O mundo é o único ser auto-suficiente. Não precisa de vitaminas, nem proteínas. Não precisa de sapatos, nem de gel da barba. Não precisa da fotossíntese, nem de coitos. Ponto. Ponto. Ponto cruz. Ponto de arroz. E sushi com batatas cozidas. Corres. Corres porque queres aquelas colunas? Que desgaste. Que desperdício de energia. Sim eu sei. São as que queres. É o que queres. São as com que sempre sonhaste. Uma prioridade. Mas repara. Até as Miss Universo tem sonhos maiores. De paz. De felicidade. De vinde a mim as criancinhas... E não, não rias. Eu ando a correr para poder comprar um requeijão. Já tenho o doce de abóbora. Depois faço uma orgia. Embriago-me e tomo aspirinas. Vou fazer uma tatuagem. No braço. Ou nas costas. Na barriga da perna. No dedo grande do pé. Em qualquer lado. Preciso de marcar a pele. De sentir agulhas. De provocar sensações. Ando cansada. E hoje veio-me outra vez à mente aquelas olheiras profundas. Ter amor a um par de olheiras. E os orgasmos têm sabido a nada. Um soluço. Miséria... Já não as posso ouvir. Vomito-me com sandálias. E conversas de sandálias. Desejo o Inverno. Para que falem em botas. Em botas com botões. E cordões. E atilhos. E aplicações. E saltos altos. Ou rasos. Mas botas. Por favor. Imploro. Peço-vos. Rogo-vos. Falem em botas. Em botas... Olho neles e dou um par de estalos. Em mim. Depois existem as sopeiras. As belas e más das sopeiras. Ai. Ponho a mão na anca e desafio-as. Para uma sopa. Uma lavagem de loiça. Um jantar na ponte Vasco da Gama. As sopeirinhas pequeninas. Sem cabeça. No lugar uma boca. Para falar. Falar. Falar. Ouvirem-se. Ouvirem-se muito. E de lado uns olhinhos estrábicos. Que tudo vêem deturpado. Para invejar. Observar. Desdenhar e invejar. E existe ainda aquele que atrevidamente diz gostar do Budha Bar. A maravilha do Budha Bar. E como se escreve Budha Bar? Preguiça. E as músicas dos esquemas. Todos iguais. Acima. Abaixo. Abaixo. Acima. Que lindas. Que sensuais. Sensualmente iguais. Todas iguaizinhas. São irmãs gémeas. Há mulheres que são irmãs gémeas. A mãe quer que se vistam de igual. É a moda. E a oportunidade de abanarmos as ancas olhando na fotografia. Sorridentes. Sempre sorridentes. Alguém já se lembrou porque a beleza está associada a sorrisos? Porque carga de água temos de sorrir para a fotografia? Bem fazia a minha irmã. Chorava. Chorava. E eu tola. Sempre tola. Ria-me até às lágrimas. Bastava olhar nos dedos de pontas pretas do fotógrafo para me rir. Dos dois dedinhos dele. Porque me ria eu? Aproveitava. Aproveitava para me rir de todos. De mim. De ti. Dele. Dela. De nós. De todos. Tal como aproveito para chorar todos os males do mundo. Com um golpe. Com um pequeno golpe. Choro por ti. Por mim. Pela dor. E por ele. E por nós. Por todos. Cambada.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

foz


Donna Murty Todd


Sim, lembro. Era eu quem metia sempre as mãos no vomitado. Quem ficava na casa-de-banho a limpar os dejectos. A desentupir o lavatório. Quem revolvia o vomitado na água parada do lavatório. Era um nojo. No início. Coragem. Racionalizar. Podia até imaginar que eram pétalas de rosa boiando em perfume. Não sei. Mas sim era eu. Eu que nunca vomitava. Perdia os sentidos. Ou ia. Ia por aí. Dormir aqui ou ali. Partir para ver o mundo. Ver cidades. Conhecer gente. Metia as mãos na sangria. Revolvia a fruta. Despedaçava entre os dedos os gomos da laranja. No final restava-me o vomitado. E os beirais das portas da rua. Os nossos rabos já sabiam escorregar sozinhos. Uma rua com bêbados encostados a portas. A paredes. Que procurávamos nós? Não procurar. Adormecer?

Mascaro-me de velha ou de espanhola? Tenho os sapatos. Posso arranjar a cabeleira. Mascaro-me de bivalve. Abro-me e fecho-me. Abro-me e fecho-me. Apertadinha... O Natal está quase a terminar. O da campanha, pois do outro já só resta memória. A minha mãe costuma dizer Para a frente, filha. Para a frente. É mãe, para a frente. Para a frente. Afinal eu já tive dias de correr em corredores de mármore. E de fumar às escondidas. Sabes não sinto ciúmes. Quero-lhe bem. Nunca fui a última. E alguém é? O meu maior sonho foi o de ter à disposição todos os chocolates, rebuçados e pastilhas do mundo. Acordava e no mundo todos tinham desaparecido. Puf. Evaporavam-se. Restava eu e as minhas irmãs. Corríamos para o café da Paiva. Para a vitrina dos chocolates do café do Paiva. E ali ficavamos. Até à eternidade. Um nunca acabar de sonho e chocolates. Porque quando somos crianças não necessitamos de futuro, nem finais. A desembrulhar um a um. A abrir um a um. A comer todos. Todos os que pudesse. E quanto eu podia! O sonho nunca teve fim. Por vezes a minha mãe não se evaporava. Por culpa. Por culpa em fazê-la desaparecer. Não porque quisesse comer pescada cozida. A São já está grande e pode fritar batatas. Esses são de mel e eu não gosto. Prefiro estes de morango. E aqueles além da Regina.

- Oh mana... mana...
- Sim? Que queres?
- Abre-me a gaveta.
- Tabém...
- Bigado.


E lembro-me. Ainda me lembro. Não sei porque lembro, mas lembro. Do primeiro dia em que consegui sozinha. Sem ajuda. Sem pedir. Sem gritar. Sem chamar. Do primeiro dia em que ainda não chegando aos puxadores, com os dedos em garra, crispados na madeira escura, abrir a última das gavetas da cómoda. A minha gaveta. A junto ao chão. A mais baixa. E na parede um quadro a óleo de um palhaço. Nunca gostei dele. Algo falso... Sorria mas o olhar...

A minha mãe fazia bolas de berlim sem creme para levarmos para a praia. Há quanto tempo não como uma bola de berlim? Sim... Lamber os dedos no fim.

sábado, 22 de agosto de 2009

Ping Ping


Hiroshi Watanabe, Saori Suga - Matsuo Kabuki

Acerquei-me de ti. Rápido. Rápido como tudo em mim. Rápido. Assim. Quando olhaste, eu estava colada aos teus braços. Quando me procuraste, tiveste de baixar os olhos. Quando me ouviste a voz, eu tinha a minha mão no teu cabelo. Rápido. Rápido. A luz.

Eu dançava. Na música. Dançava. Abri a porta para que entrasse. Agarrei na minha mãe e disse-lhe que o meu amor por ela era de morte. Que morreria por ela. Agarrei-a e dançámos juntas. Disse-lhe que poderia ser lésbica. Por ela. Que me espelhava lésbica. Assim lésbica. Que ficavamos bem assim juntas. Dançando. Com os olhos das minhas irmãs em nós. Invejando. As nossas ancas. O nosso abraço. O teu cheiro. O cheiro a mãe. A perfume de velha. A roupa de Senhora. De Senhora de óculos e corpo mirrado. A Senhora de Infante Santo. Cheiro. Dançamos. Dançamos. Eu e a minha mãe. Eu. Ela.

O buraco comedor de homens à porta de minha casa fechou. Fecharam-no. Os homens de calças de ganga e coletes reflectores da câmara fecharam-no. As pás nas mãos calosas enluvadas encheram-no de terra suja de fezes de pombo. Depois um homem ajoelhou-se e mostrando o rego do cu calcetou o espaço outrora salivoso. O meu buraco. O nosso buraco. Que faremos agora? Que faremos? Agora todos vão subir as escadas. Agora os degraus parecerão palácio. Que faremos? E os vestidos ainda não me servem. Nem os sapatos. Desvio-os? Para Alfama. Ponho música mexicana e canto à varanda. Acendo a lanterna e aponto-a aos olhos. Pode ser que se assustem. Pode ser.

Eu entro. Entro e sempre duas mulheres aos beijos. Sempre. Diferentes. Mas sempre duas. Encostadas ao lavatório. Esfregando-se contra o lavatório. A música da noite provoca acções. E uma delas molhou-se numa mesa de vidro. Uma mesa no centro da pista. Com um homem de botas altas a despejar-lhe garrafas de vodka nas mamas. Eu saio. E na porta do lado é que eu entrava. Nessa é que eu me espelhava. E ainda que diga isto ao som de cumbias lerei ao som da música que ouvia quando te conheci. Porque tenho de me ler. Sempre. Antes. Sentir-me. Verificar se me sinto. Um bisonte. A pesar-me nas costas. A esfregar-se e eu a querer que escorregue.

Eu tinha uma cama de ferro. Guardava as pastilhas para o dia seguinte colando-as às grades da cama. Algumas colavam-se e não as conseguia tirar. Nem arrancando a tinta branca esmalte. Nem mordendo. Nada. Não mascava pastilha no dia seguinte. A geração dos números de circo para poder comer uma pastilha. E hoje tudo me é rápido. Encho a boca. E não tenho cama de ferro. Não guardo para outro dia. Carne.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

É o que é


Franko B

Entra. Entra. Sentas? Não. Não sentas. Eu sei que não sentas. Vens e tomas. Tomas e partes. De ténis calçados. De roupa despida. Entra. Senta. Pára no meu olhar. Com as mãos no meu colo. Mexe-me. Sorrio. Falas. Falas. Ai. Cala-te e fode-me.

Este sofá que me recebe é grande. Frente a vocês sinto-me confortável. Sinto que os dias podiam ser assim. Quentes. Com vento vindos de uma janela fechada. Com armários de cor com papeis que desconheço. Vocês dois aí em frente de mim. Em frente da mesa. Da secretária. Tem nome? Sei. Sei que tem. Mas eu esqueço-me. Eu só me lembro do meu nome. Qual? Aquele que me foi dado. De donzela. De virgem. Tenho saudades tuas. Vens a minha casa e jantamos fruta.

Não contes a ninguém. Não fales do que calo. Do que omito. Cala-te. A minha mãe tem a cabeça branca. E nas mãos a sabedoria de quem ensinou. No Maquiavel na mala. E nos comboios que partem. A minha mãe é diferente de mim. Tem cara de cavalo. É algarvia. Tem cabelo de arame. Ou tinha. Tinha. Tenho o cadeirão dela. Herdei o cadeirão dela. Aquele onde as cordas se prendem. As que estão no estendal. Vou dizer-lhe adeus um dia. Sabemo-lo. Nós que choramos. Um dia...

É de madrugada. É cedo. Uma cona fodida é maresia.

Eu demorei muito tempo a conseguir lançar o pião. E a assobiar com os dedos. Fui precoce com as letras. E os pintainhos. Mas vamos dar um outro ritmo. Vamos dar um ritmo cavalar de drogas. Das que não tomo. Foi um crime. Um crime ela deitada nas escadas. Morta. Aparentemente dormindo. Foi um crime. Pensei se tinha sido eu a matá-la. Eu que matei a minha vizinha da frente. A velhota da minha vizinha da frente. Matei-a do coração. Matei-a de falta de vergonha. Matei-a. Não aguentou o que via. O que viu. O que ouvia. Ai. O que ouvia. As palavras... Cerrava as janelas. Fechava-se. Devia tomar comprimidos para domir. Para esquecer desta puta da vizinha da frente. Eu cavalgando nele. Senti-a. Pressenti-a. Eu cavalgando nele olhei-a. Vou? Não vou? Cerro a cortina? Deixo-me estar aqui enterrada? Vou? Mas eis que o dia decide. Apressa-te. Apressa-te. Um susto. Que susto. Que vergonha. A dela. A minha foi orgasmo. Sentada na tua cara. Nunca mais a vi. Acredito que tenha tombado. Caído. Que tenha putrificado junto às portadas verdes. Que a tenham encontrado com um esgar na boca. De susto. Que susto.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Cérbera


Namio Harukawa

Café. Um amor e café. De manhã existe amor e café em mim. Um sono despenteado no corpo. Um ardor entre pernas. Um cigarro por fumar. Na frente, dias preenchidos. Dias com luz. Noites com prazer. Dias de flashs. De fotografias de recorte. De resumos de custos. Noites de saltos altos. De sapatos de verniz preto. De rabos empinados. De mãos na prateleira. Sopros no meu corpo. Sou feliz. Porque te espeto o meu rabo. Sou feliz. Porque te engulo entre as pernas.

Quando te conheci desconhecia o que me irias revelar. Quando te conheci o teu entusiasmo pela vida era semelhante ao meu. No final tocávamo-nos. No caminho podíamos dançar. Tinhas uns seios maravilhosos. E tens. Penso neles. Quando penso em beleza penso neles. Mamilos circularmente redondos. De encher. Encher. Encher covas de tecido. De perder. Perder-me. O olhar no teu corpo. No corpo que tentei conhecer. Pequeno. Mãos de dedos delineados. De perder. E perder-me. Recordo a tua expressão. De Ai e Ui. De querer. E correr. A expressão de urina sobre a cara. A expressão de nós crianças brincando ao não suposto.

Traz-me um homem que me ame os pés. E outro que me beije a boca.

À noite dançaste com ele. Eu sorria. Nas vossas voltas. E ancas. Rodopiaste com ele. Eu sorri. Nas mãos dele em ti. Na tua cara de criança bêbada. Que ternura. Existe uma carícia nos vossos corpos que sinto daqui. Que me chega daí a mim. Que me treme. Que me movimenta e faz levantar. E a beleza invade. Invade-nos e deixa-nos imóveis perante o cansaço. Os teus homens. Os teus taxistas. E drogados. Os teus mitras, vigaristas, ladrões, apaixonados. Os teus bailarinos e travestis. Tu que os vestes e despes de saias. Que depilas os pelos que eles não querem. Que ocultas barbas em faces morenas. Que dormes no meu sofá agarrada a homens assexuados. A putas. Que putas. O impulso. O impulso de mergulhares. E quem te segue perde-te nas profundezas porque tu sabes nadar. Porque em ti tudo são braços e pernas. Até à baralhação dos órgãos.

Um dia vou escrever-te. Vou revelar-te. Vou mostrar-te. Por agora deixa-me ficar a ver-te. A gozar-te. O jantar arrefece sobre a mesa mas tu virás. Vens sempre. Comes frio. Comes quente. Vens sempre. E chegas carregada. Partes de fugida. E voltas. Bebo café. Bebo as sopas que me deste. Até ao enjoo. Vende-me. Leiloa-me. E fica com o dinheiro. Embebeda-te com ele. Compra vinho, compra whisky, compra vodka. Compra amendoins e tremoços. Paga copos e rodadas. Vende-me. Vende-me pelo valor mais alto. Apanha um táxi e vai dançar. Vai esfregar o corpo contra promíscuos. Vai dar a mão a pernas peludas. Quando voltares roubas-me em gargalhada embriagada. Quando voltares eu terei aquela minha cara de gente. Quando derem por isso já não têm nada. És uma ladra.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Amor


Catarina Cabral

A minha rua descansa. Ainda dorme. Acordará estremunhada. Com o gato cor de cenoura. E as crianças. A minha rua silenciou-se cedo e não acordou ainda. É infantil. E todos os dias acorda para a escola. A rua que começa e acaba em calçada. Cinza. Dura. Quente e fria. A minha rua está em silêncio. E no silêncio eu. A minha rua é-me. E é. Tem cheiro a roupa lavada e a estendais coloridos. Tem Senhoras de cabelo branco e sorrisos nas palavras Bom Dia vizinha. Tem um carro. De vez em quando. Um acelerador em descontínuo. Tem-me a mim e ao da frente. Aos de baixo e aos do lado. Pedras que batem nas janelas. Gritos. Fado. Dias e noites. Sol de fugida. Ontem teve parabéns. E festa. E cantares. Música. Sardinhas. Motorizadas. A minha rua é. E eu nela vivo. Eu que nela já andei nua. Sim, ele despiu-me e eu senti-a. Na pele. No pudor de me apresentar assim. Desvairada? Vivida. Os pombos arrulham. E colam-se aos beirais e janelas. Passeia-se. Passa-se. Descem para se sentar num degrau. E conversam. Ouvimos. A minha rua é um palco. E os actores amadores. De piolhos na cabeça. E macacos no nariz. De rabos sujos e cheiros enjoativos. De meninos lavados. E quarentonas carcomidas. De escadas em madeira. E passos firmes. De janelas abertas. E convites à minha vida. Em varandas estreitas bebe-se café pela manhã. E comem-se gelados pela tardinha. Passam os dançarinos. Os que aprendem. E línguas estrangeiras. Vasos ao sol. Repousos vegetativos. Calor nas tardes. Som de chuva em pedra. Rios de água no Outono. E o miradouro em cima espreita a ponte e o sul. O adamastor enfurecido faz sombras aos cigarros e charros. A relva seca. E uma multidão ri-se e conversa. Mulheres com cabelo cor de fogo. Ondas douradas imensas. Eu de cima. Desço. E tal como o homem que tem de despir a saia eu dispo-me da rua que não é minha.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Avalanches


Otto Dix

Vamos dançar. Vamos tu e eu. E ele. Levamo-la a ela. Para a sala suja de pó com fundo vermelho de cortinas de veludo. Vamos agitar-nos no ritmo dos corpos a nosso lado. Manear as ancas. Agitar. Agitar. Mover-nos em onda. Secar as bocas dos beijos. E do desejo. Esquecer que um dia fomos concebidos nesta solidão intocável. Neste querer sem satisfação. Nesta procura febril. Vamos. Tu, eu, ele, ela, nós, e quem mais queira. Porque há sempre espaço. Espaço a receber. A estar. A adaptar. Vamos dançar. Olhar nos corpos a nosso lado. Revermo-nos nos corpos a nosso lado. Em proibição. Escondidos. Deliciosamente ocultos. Vem. Vamos dançar. Trocar de cigarros entre bocas. E goles de frescura na garganta. Vem. anda. Venham. Vamos dançar.

Há sinais nos dias. Sinais que me apontam. Que me seguem e perseguem. Sinais que me dizem. E me indicam. Fecho os olhos. Encerro-me em concha. Que fazer? Onde ir? Eu que aprendi a perder-me. E a encontrar-me. Em lágrimas. Lágrimas e risos. Em chorrisos. Eu que tenho o poder de chorar no prazer. E gargalhar. Rir de felicidade. De grande. Chorar pela angústia de tudo aquilo. De como é possível? A angústia de encontrar. Da possibilidade. Nestes ontens de impossibilidades.

- Se te deixo tu vais.
- Sim, irei.
- Não sei. Não sei o que fazer.
- ...
- Deixas-me sem saber o que fazer. Temo.
- Por nós?
- Por ti. És... de uma intensidade viciante...
- Desculpa.
- Não... Vai. E volta. Volta para me contares.
- Sim. Como sempre. Como preciso.

Tocaram-me. Tocaste-me. Tocas-me. Tocam-me. Volto-me. Olho. Vejo-te. Sorrio. Dou a mão. E parece que nada aconteceu até hoje. Parece que este período não existiu. E que sempre aqui estivemos. Juntos. Em harmonia. Mas é mentira. Mentira. Uma ilusão. O nó desatou-se. E perdidamente tentamos segurar nas pontas. Sabes o que fazer? Eu não. Não sei se pouse a corda. Se me enforque com ela. Se a enrole no pulso. Se tento enlaçar o primeiro que passe. Se me sodomizo com ela. Sabes o que fazer com ela? Eu não. É uma ponta. A pobre de uma ponta. A inutilidade nas minhas mãos.

Eu gostava de ter algo a transmitir. De ser mais que este vazio. Este vazio que se apoderou de mim. Este vazio que cresceu. Que me consumiu. Eu gostava. Mas tenho de aguardar. Aguardar que o silêncio se sinta. Que os meus ossos se descolem da carne e caiam. Aguardar e aceitar. Aceitar novamente este silêncio. Este silêncio que se apodera de mim. Sempre. Sempre que existe uma impossibilidade de sentir. Sempre que o cigarro apaga. Ele tinha receio desta angústia. Eu aceito-a. É primordial. E não me recusa o gatinhar. Nem o vestir-me de outra. Pôr uma peruca e ser loira. Uma cabra de uma loira. Porque eu gosto de cabras. E de bibliotecárias. Eu pedi-lhe para irmos devagarinho. Ele disse que tínhamos tempo. Que iríamos com calma. Mas matou-me à primeira. Escolheu matar-me assim que me viu. Esventrar-me. Degolar-me. Somos uns incapazes. Não existe em nós o equilíbrio dos pêndulos. Rebentámos com as rochas e agora... corremos.

domingo, 9 de agosto de 2009

Cinema


Manuel Alvarez Bravo

Mantém-te nessa posição. Assim. Baixa os braços. Assim. Isso. Fecha os olhos. Isso. Descontrai. Não vai doer. Garanto. Saberá a beijo. A beijo de línguas. De línguas húmidas dançantes. Grandes demais para permanecerem na boca. Inchadas. Em jogos. Em danças. Num bailado de saliva. Descontrai. Duas línguas que se tocam e criam o desejo de nos comermos pela boca. Descontrai. Vou colocar outra música. Esta é música de crueza. E eu quero-te morto. Embalar-te na morte. E trazer-te de volta à vida. Penso nela. Ela... Ela tem uma fixação com a morte. E eu julgava-me diferente. Até hoje julgava-me diferente. Que eu não. Mas olhando no passado verifico simulações. Tentativas de a sentir. Vontades. Quentes. Desejos. De deixar de sentir. De deixar de ser. É libertador. Suspiro. Descontrai. O desmaio do breath play... que tesão. O voltar. Em humidade. Em névoa. Xiu... Calma. Tens uma cicatriz no peito. Em forma de escaravelho. És sagrado? Conspurco-te? Para onde me levas?

Vi-me agora no espelho. Estou com cara de personagem do Antonioni. Cabelo pendente para a frente. Despenteada. Num desassossego. Mulheres em conflito. Que se debatem com elas e com o mundo. E pressinto as baratas na mesa. Il deserto Rosso... Um barulho infernal. Que barulho. Ruído que não pára. Quando acaba é um alívio e sentimos que estivémos doentes. Acamados. Delirando. Gosto de pensar na névoa. As relações pessoais. O médico e o paciente. Da co-dependência. De como necessitam um do outro. Em como o que é doente necessita do tratador. Em como o tratador não existe sem o doente. Aparentemente o frágil é um deles. Mas sorrio sempre na obtenção da resposta. Ou choro. Ou... excito-me.

Há uma cena que não me sai da cabeça. Em como eles copulavam a rir. Ela encavalitada nele rindo. Falando da família. Falando de outros. De como as crianças estavam indo na escola. Em como o Alexander estava ficando rebelde. Na avó. E nas mulheres. E tudo aquilo eu sentia como felicidade. Como intimidade. Como união. Cavalgo-te e falo na roupa que tenho para estender. E no que vamos jantar. Apoio-me nas tuas mãos e faço a lista de compras. Ergo-me nas pernas e enterro-me enquanto me contas a viagem do tua irmã. Com humor. Rindo. Os suecos tem um pouco de sangue italiano.

A minha sobrinha é como eu. Precisa de pessoas.

sábado, 8 de agosto de 2009

pausa


Ricardo Vercesi

Vais viver para sempre. E eu. Eu também. Também viverei para sempre. Vês os meus pulsos? Estão coçados. Do uso. Da vida. Vês? Chupa-me os pulsos. Bebe-os. Bebe a minha pele desgastada. Somos assim sozinhos. Mas somos. Há quem não seja. Há quem só esteja. Somos assim espelhados. Somente aí. E aqui. Vê. Vê como tenho os pulsos. Em como estão inchados. E não te sentes. Quero-te a meu lado. De máscara de gás. Sim. Eu sei que gostas. Sim. Tu sabes que eu gosto. Vem. Não te sentes. O amor dá-o a quem necessite. Eu tenho os meus pulsos. Vê. Lambe-me os pulsos. Vou por creme na cara. E lápis nos olhos. Preto. Um risco grosso. Preto. E pinto os lábios. De castanho. Fica-me bem o castanho nos lábios. Um castanho pardo. E ponho rouge. Para que tenha as cores da Primavera. Beija-me os pulsos. Como são sensíveis os meus pulsos. A pele desgastada dos meus pulsos. As veias paradas dos meus pulsos. São meus. Sinto.

Debruço-me à varanda. Escuto. Oiço vozes. Vêm longe mas vêm em fúria. Vêm longe. Aproximam-se. As vozes que eu reconheço. As vozes que eu esqueci. Vêm ao meu encontro. E quem são? E não lembro. Tento. Tento. E que não lembro. Mas vêm iradas. Que me querem? Que me querem? Será que? Será que falhei em algum ponto? Em qual? Em tantos. Meu deus em tantos. Aquela voz. Xiu. Reconheço aquela voz. Algures aquela voz falou-me. Num tempo. Em que tempo? Que me disse? Que me disse aquela voz? E eu que não lembro. Socorro. Não lembro. Aproximam-se. Cuidado. Escondo-me? Onde me escondo? Quero fugir e o meu corpo aqui parado. As minhas mãos. Os meus braços. Onde tropeço. Tropeço parada... Sem um único movimento. Ai. Vêm zangados. Gritam. E eu que não lembro. Culpa. Que culpa... perdoem-me. Ajoelho-me? Peço perdão? Ajudem-me. Peço ajuda? E o corpo que não obedece. Este corpo parado. Mas... passam. As vozes passam. E continuam iradas. Mas quem são? Passam... Não me procuravam. Não pararam. Nada me queriam. Quem seriam? Mais um círculo de repetição? De uma culpa primordial que se quer fazer sentir? Senhor eu não sou nada.

E não sou eu. Não sou. Ou também sou. Sou também eu. Então? Decide-te? Sempre a negar. Sempre a dar um passo atrás. Sempre a afirmar para colocar em dúvida. Decidi-te. Está decidido. Não sou. Ou sou mais. Então? Bem. Sou isso mas também aquilo. Então, o que és? Vendo bem. Sou nada.

Há gente a gritar na rua


Luís Durão

Deito-me ou mantenho-me acordada? Já não sei o que fazer. Que fazemos às sete da manhã de Sábado? Sós. Lemos. Já li tudo o que havia a ler. Ressinto quem não escreve para que eu leia. Não me apetece ler papel. Apetece-me ler com os olhos. Não com as mãos. Apetece-me ler na luz. Não na escuridão. Lá fora lavam as ruas. A água. O som. Os gritos. Fecha. Abre. Pintar paredes? Sair para a rua. Debruçar-me lá em cima. Ver a ponte. O rio. Os barcos. O lixo no chão. A rede. Ver pela rede.

Parece que foi de manhã. A carroça chegou ainda era de noite. Levou o corpo. A mulher de bigode moreno. A que sorria à nossa passagem. E que dava broas com pinhões. Parece que foi de manhã. O corpo pequeno. Curvado. O peso de se ser sorriso numa vida pesada. De ser vaca, boi, asno. De ser terra e cascas de favas. Para o gado. De alimentar galinhas com ervas de valeta. Parece que foi de manhã. Numa carroça. Na rua suja de cocó de ovelha. Salto aqui. Salto acolá. Falhei. Esfrega na erva. Salto aqui. Salto acolá. Eu não. Vamos seguir o rio e perdermo-nos nas hortas. No caminho velho que agora está alcatroado. Assassinado. As minhas memórias enterradas. Em pontes romanas acimentadas. Em quintas napoleónicas pintadas de rosa. Em pombais arruinados. E o vizinho já não toca as canções do antigamente. Agora existem play lists. E rádios.


Ele assinou M. Eu pensava que era P. E antes J. Eu que sou C. e A. e V. E... e uma prostituta. Uma prostituta. Somos umas prostitutas.

O Cais do Sodré cheira a hortaliça podre. Resta-lhe esse cheiro. Somente esse cheiro. Já tem clínicas de estética. E meninas de Cascais. Os hits de Verão com coreografias. A fazer lembrar Praga. E os homens feios de Praga. De bigode e olhar duro. As mulheres bonitas de Praga. Sensuais e femininas. A ela comi-as. Traz-me um recuerdo. Um recuerdo em forma de falo. Ou de marionete. Ou de prato. Um galo de Barcelos. Um saco do pão. Uma camisola de lã branca. Traz-me um pratinho com o meu nome gravado a azul. Se couber. Se o prato for grande. Ou mandas gravar "Eu". Apenas eu. O meu nome. Ou um prato em branco.


Eu podia trabalhar por turnos. E fazer três ou quatro de seguida. Talvez assim dormisse. Talvez. Ser vigilante numa fábrica. De noite. De dia. Numa fábrica com chaminés altas e fumo colorido. Luzes dançantes. Focos e cheiros nauseabundos. Vestia farda. E apertava as calças na cintura. Para me sentir uma foca. Colocava um anúncio procurando noivo. Apresentava-me como uma romântica. Que gosta de rosas e ganchos no cabelo. Que gosta de golfinhos e bonecas de porcelana. De ursinhos de peluche e almofadas em forma de coração. Em veludo. Fofinhas. Fofinhas. Depois escrevia poemas. Sobre o pôr-do-sol. Sobre leões e passarinhos. Escrevia poesia sobre beijos sensuais em mamilos rosáceos. Sobre peles macias em mãos de dedos finos e travessos. Calçava sapatos de verniz verde. Ou lilás. E saias rodadas brancas com padrões coloridos. Camisolas de renda azul bebé e casacos de fazenda xadrez. Pavorosamente romântica. Pavorosamente idealista. Pavorosamente alegre. Pavorosamente feliz.

Sangro. Vou comprar tampões.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

vestidos para matar



Se eu acreditasse em deus cantava-te. Cantava-te esta canção. Cantava. Se eu acreditasse em algo. Se eu acreditasse. Se eu acreditasse ainda em ti. Se acreditasse em alguma coisa mais que não neste corpo que sente. E sente? Será que sente? Não sei. Nada sei. Sei que gostaria de acreditar na verdade. Numa verdade. Numa qualquer verdade. De ter certezas. De não ser em dúvida. Em cepticismo. De acreditar na misericórdia, de alguém. De alguém que não eu. De acreditar na bondade. De alguém, de alguém que não eu. De acreditar no amor. Na força do amor. Se for essa a tua vontade. Frase bonita. Frase poderosa. Frase que já nomeei a pessoas. Nunca a deuses. Se for essa a tua vontade.

Uma ilha no pacífico


Wolfgang Eichler

Olha para aqui. Aqui. Neste buraco. Este aqui aos meus pés. Foi de onde saí. Agora. Há pouco. Não há muito tempo. Olha. Vê. Vês? É escuro. Sim, negro e húmido. Foi de onde saí. Onde estive. Escondida. Reclusa. Prisioneira. Com e sem vontade. Foi dali. Deste buraco. É escuro. Apercebi-me disso no dia em que ele elogiou o meu decote. Não o vi. Perguntei-lhe se o via. Disse-me que não. Que o sentia. Como aqueles dois no elevador. Sim, aqueles dois que formavam um casal. Ainda que ele tivesse amantes. E ela, ela talvez calasse os dela. Não sabemos. O filme acaba e ficamos sem saber. Mas vê. Debruça-te e vê. E cheira. Cheiras? É turvo. Sombrio e recôndito. É frio. É peixe, é talho. É cadáver e entrega. Foi daí. Daí que eu saí. Puseram-me lá dentro. Mas eu quis cair. Ai! Se quis! Ai! Como quis! Aqui é tão claro. Cego. Lá existe a música da água. Dos pingos. Da humidade. Do eco. De mim. Da minha voz. Do meu roçar. Do meu respirar. Lá tudo é... exageradamente exagerado. Até o sono. O sono pleno de sonhos. Um eterno sonho. Uma confusão de sono com sonhos. Muitos. Aos milhares. Todas as noites. Ou dias. É escuro. O sono que é rápido. O sono que é carcomido pelas dores e desconforto. O sono que não é descanso. É um sono cansado, estoirado, estranhamente acordado. Sim. Olha. Vês. Ali. Ali, naquele canto. Foi onde caí. Sangrei. Mas sangro todos os meses. O meu sangue sabe a ferro. Sabe a sexo. Sabe a fígado de frango. E levantei-me. É fundo. Sim, é fundo. Como muitos buracos. Meus. Meus. Fundos. Negros. Os da minha mente. Tenho buracos na testa. Arrancaram-me memórias. Deixaram-me esta corrente de ar. Agora que olhaste responde-me. Respondes? Responde-me se eu quereria lá voltar? Eu que quis cair. Eu que me levantei. Eu que me ergui. Eu que me queixei. Eu que me parti. Quereria eu lá voltar? Responde. Voltar para esperar? Para manter-me na espera? Esperar pela luz? Esperar pela mão? Esperar porquê? Há luz aqui. Muita. Demasiada para os meus olhos. Mas há. Há mãos aqui em cima. Demasiadas mãos que me atormentam e movimentam. Mas há. Há mãos. Seria pouco inteligente em querer lá voltar. Em querer fingir que te espero. Em querer fingir que espero sei lá o quê. Fica o buraco livre. Experimenta tu. Não? Ri-te. Eu também me rio. Sim. Somos todos especiais. Até. Até ao dia em que o deixamos de ser. Até ao dia em que somos todos igualmente iguais. Todos estupidamente iguais. Todos ridiculamente repetitivos. Todos. Tu e todos. Eu e todos. Todos.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Canto(-te)


Nicholas Sinclair - Franko B

Passei. Rápida. Passo largo. Olhei ao lado. Procurando um banco para me sentar. Não um descanço. Uma desculpa. Uma desculpa para fumar um cigarro. No lado, durante cinco passos. Olhei-o. Mantive o passo. Parei. Após mais uns passos. Parei na imagem guardada. Virei-me. Olhei-o. Ele em mim. Mantive o olhar. Nele. Naqueles olhos com cataratas. Chorões. Molhados. Castanhos cinza. Opacos. Um olhar em mim e o meu olhar nele. Aproximei-me. Mexendo na mala. Revolvendo a mala. A carteira. Ele olhando em mim. Baixa os olhos. Perto. Desconforto. Meu. Dele. Ofereço-me para ajudar. Nega. Espanto-me. Entristeço. Moscas rodeiam-lhe os pés. Perto vi porquê. Porquê... Falei-lhe. O dever. Levá-lo a um hospital. O fácil. Dar dinheiro. Despejar dinheiro em cima dos problemas. Da culpa. Da minha culpa. Acariciar a minha felicidade com uma esmola. Um estranho. Para sempre um estranho. O olhar de medo em mim. Em mim... se me teme o que não teme? A mim. A que o viu durante cinco passos.

A mãe senta-se no banco ao sol. O pai senta-se no banco à sombra. Na frente. Na frente dela. Na frente dele. O miúdo pára junto ao pai. Indeciso. Será que está indeciso? Olha num objecto que tem na mão. Com feições de aborrecimento. Será que se zangaram? Entre eles um rio. Uma brecha na terra. Ela está de óculos. Pode olhar neles. Ou não. Conflito. Sinto-a bela. Ali. Sentada. De perna cruzada ao sol. De cabelo revolto. Espesso. À que não vejo os olhos. Sinto o conflito. Em vinte passos. O miúdo não ergue os olhos. E não se senta. O pai debruça-se. Apoia os cotovelos nos joelhos. Olha na água. Ou nela? Zangados? Ou simplesmente tendo prazer na solidão? Eu que fico sempre em dúvida. Onde começa? Onde acaba? Temos direito. Quando? Sinto que o miúdo se pudesse alcançava-a. Se entre os dois não existisse a água. Um rego de água. Ele olha-a. Depois de se cansar de olhar no objecto. Depois de perdoá-la?

Era uma esquina. Assim de repente. Vindo do nada uma imagem clara. Junto aos contentores coloridos. Uma imagem clara. Ainda que à sombra. Ainda que semi-oculto. O tempo de dar três dos meus passos. Que claridade. Que arrependimento não ter dado um passo atrás. Mas senti-me a caminhar pela sua intimidade. Na sua casa. Entrei-lhe pela casa dentro. Perdoa-me. Magro. Magro. Devia ser alto. Nu. Vi-lhe o peito. As pernas. Os ossos. Os olhos azuis. O cabelo ralo. Numa posição de fome. Na posição de dor. A posição em que vemos tantos. E tantos. Sentado de pernas esticadas semi-dobradas. Os joelhos. E uma luz. Aquela luz era por certo a sua companheira. Acariciava-lo. Mantinha-se a seu lado. Protegia-o. E protegeu. Eu apenas dei três passos. Segui. Segui com vontade de voltar atrás e rever. Revê-lo. A ele. À luz.

Passa por mim. Passo a passo avança. Dá-me avanço. Tem umas pernas do tamanho do meu corpo. Magras. Cintadas em ganga azul. Cabelo comprido. Castanho com nuances claras. Uma cabeleira que lhe cai sobre as costas e ombros estreitos, morenos. Sinto-os salgados. Secos. Da praia. Do sol. Da areia. Os braços de pele baça. Um rabo pequeno. Uma nádega enchia-me a mão. Somente uma. Uma mão. Mais um passo. Afasta-se. As pernas. Que pernas... O movimento. Perco-a. Na multidão. Reencontro-a nas escadas. Os saltos altos soltam-se-lhe dos pés. Manca. Coxeia. Treme. Passo por ela. Avanço. Dou-lhe avanço ainda que quisesse tê-la pela frente. Eu nas costas. Observando em passos o movimento daquelas pernas. Daquele cu que me caberia nas mãos.

Três passos depois da passadeira. Dei apenas três e no chão ao longe vi uns pés. Tristemente metidos, enrolados, enfiados, enrodilhados numas sandálias azul bebé. Dedos que saltam, que se rebeliam, que se desprendem e escorregam para fora do apoio das sandálias. Num passo apreciei a revolta dos dedos. Daqueles dedos de unhas vermelhas. Daqueles dedos morenos cintados por correias azul bebé. Feitos prisioneiros. Mais um passo e procuro olhar na proprietária daqueles dedos. Daqueles pés. Cambaleante nas sandálias de plataforma altas. Muito altas. Subo o olhar até ela. Até ela ser gente na minha mente. Pelos meus olhos. No olhar dela. Mas antes uma exclamação. Uma admiração. Um absurdo. Um ridículo. Um andar... sofrido. Desnorteado. Um andar que podia ser confortável torna-se... porquê? Penso. Porquê? Empina-se o rabo? Pois que se empine de quatro. Não de pé. Não escrava. O meu olhar reprovador na mulher de corpo pequeno e anca larga. O meu olhar moralista. O meu olhar acusador. Inquisidor. E em dois passos o arrependimento. A culpa de ser assim. Em dois passos. Os passos suficientes para no olhar dela ver o desconforto do meu. Para no olhar dela ver um ama-me. Para no olhar dela ver sente-me bonita. Para num olhar dela ler só quero parecer especial. Dois passos. Podia ter sorrido. Pena não ter sorrido. Sorrido àquela mulher que só queria ser especial.

Aleluia


Richard Avedon

Tu queres. Eu quero. Mostro-te-me. Crio palavras. Recrio-me. Para ti. Em função de ti. Redescubro-me. Redescubro-me-te. Revelo-me. Em ti. A ti. Tu sabes. Tu sentes. Tu queres. Verdadeiramente? Não sei. Nem eu sei. Sabemos? Queremos. Começamos a querer. O beijo. Os beijos. Descobrir. Os corpos com a mente. Começando por cima. Indo até ao baixo. Passando pelos lados. Lambendo as arestas. Sugando a essência. A minha. A tua. Diferente. Queres diferente. Diferente. Quero diferente. Especial. Queres-te especial. Especial. Entras assim. Porque queres. E só assim eu noto. Só assim eu vou. Nada a perder. Tudo a perdermo-nos.

Vou dar-te a ouvir a minha melodia. A que fala em amor. Em entrega. Em comunhão. Partilha. A que suspira. E geme. E entontece minha alma. Traz-me paz ao espírito e uma impossibilidade grande de me fazer sentir. Só sentindo. Só vendo. Cheirando. Tocando. Ouvindo. Ouve comigo a minha melodia. Que me penetra o corpo. Pelos poros. Que se liberta nas mãos, nos braços, no tronco, nos seios, pela boca, pelo meu olhar. Em ti. O meu olhar em ti. É uma melodia de amor. De quem dança o amor. É de uma paz terrífica. Tão grande que pode levar ao desespero. Tão bonita que pode assustar. Tão complexa que muitos não a entendem. E outros nem a ouvem.

Embala-me. Nos teus braços embalo-me. Leva-me. Deixo-me ir. Vou. Quero. Quero-te. Anda. Vem. Toma-me como tua. Tira-me este cigarro da boca e lambe-me os lábios. Mordisca-me os lábios. Movimenta o meu corpo. Segura-me nas mãos e empurra o meu corpo de encontro ao teu. Puxa e apalpa. Toca. Faz-me girar. Suspirar. Gemer. Chorar de tanto te querer. Chorar por ser tão intenso. Olhar-te e não ver. Não ver nada vendo tudo. Não ver nada pressentindo tudo. Não ver nada porque os olhos não tem poderes de sentir. A mente. Somente a mente. Libertada. Sensorial. Em ti. Em nós.

Vou sussurrar-te este meu desejo. Por ti. Por querer-te. Por ser assim e tu saberes-me assim. Por seres como és e quereres que eu saiba. Porque os dias podem ser noites e as noites dias. Porque viajamos agora. E sempre. Porque queremos ir mais alto. Voar. Enlaçados. Porque a droga está em nós. E o vício. E a vontade de estar. E ir. E estar. E estar sempre. Agora. Amanhã. Ontem.

Eu caminho. A medo. Medo do Puf Paf. Do Paf Puf. Não de ti. Não do que me possas trazer. Não tenho medo de sofrer. Não tenho medo de ser magoada. O que resta é sempre mais que isso. Que uma mágoa. Que uma dor. Medo da não concretização. Da frustração. De um começar que não começa. De um querer que se esvai. Que se esvai depois de contido. De prisioneiro vira rio e desagua sem força. A pressão. As lágrimas. Os derrames. Mas sabes sou assim. Grito. Grito e grito-me. Aguardo que me silencies. E que mistures os teus gritos aos meus.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

novelas


Alan Tex

Fumo o último cigarro. Sim, não devia. Não devia fumar. Não devia estar a fumar. Não depois daquelas sádicas me terem deixado a boca incapaz de fazer seja o que for a não ser beber água. Mas elas são sádicas e eu masoquista. Tocamo-nos. Existe uma linha ténue entre nós. Eu sou sádica e de vez em quando aponto esse sadismo a mim mesma. Como agora. E elas compensam o facto de gostarem de servir os maridos, de donas-de-casa responsáveis, de mães dedicadas com uma profissão que lhe coloca nas mãos instrumentos de tortura e dor. É assim que nascem as novelas mexicanas. Devia ir para o México, mas depois da minha consulta com as sádicas só tenho dinheiro para ir a Sacavém. Banhar-me no Trancão.

Recomecemos.

Fumo o último cigarro. E já tremo de vontades pelo seguinte. Fumo o último cigarro e já me sinto ansiosa pelo próximo. E é de noite. De noite vendem-se cigarros mais longe. Mas é quarta. Há quarta os bares já estão abertos. E eu sei, por uma dependência saio de casa nua de gatas. Mas não devo. Que fazer quando me der vontade de fumar? Masturbo-me. E se não tiver vontade em masturbar-me? Vejo filmes porno. Se não resultar? Jogo cartas. E se perder me aumentar a ansiedade? Comer não posso. Escreves. Não escreves com a boca... Sim por enquanto, enquanto as sádicas não me mexerem nas mãos. Posso ir caminhar. Não te rias. Sim, sou preguiçosa. Mas caminho, por vezes não? Sim, mas de noite? Que tem de noite? E eu acaso tenho medo da noite? Não. Então, caminharei. Preferia ter xanax. E diz-me, assim, escreve-se o quê? Não sei. Lembras-te das fotonovelas italianas? Das que tinham os triângulos amorosos. O bom, a má e a boa. Ele acabava sempre com a boa. E a boa surgia sempre depois. A amante fica sempre bem vista. Ou ficava. Era a boazinha. Agora a maioria das amantes são destruidoras de casamentos. Intriguistas que tudo fazem para ter o homem em seu poder. Mete nojo, não é? Que se mantenha tudo pobre eu entendo, mas que a amante seja a má não.

Recomecemos.

Fumei o último cigarro. Consigo beber água. Já me ligaram duas vezes do City Bank para aderir a um cartão de crédito que oferece uma máquina de café. O Senhor indignou-se quando lhe disse que não ia aderir a um cartão só porque oferecia uma máquina de café. Minha rica máquina de café de saco com 10 anos! Retorquiu que ajudava. Sem dúvida que ajuda, para quem procura aderir a um cartão de crédito. Eu já tenho um e estou satisfeita. Não é gold mas eu gosto dele. Não é Amex mas aceitam-no em Cuba. Enfim, um cartão cheio de virtudes. Com possibilidades de consultas e ordens de pagamento online. Tudo o que um bom cartão oferece. Uma revista. Possibilidade de comprar a prestações artigos que se vendem no comércio tradicional por metade do preço. Boas taxas de juro desde que liquides na totalidade. Um bom cartão o meu. E é bonito. Tem um design bonito. Gosto de abrir a carteira e olhá-lo. Já pensei em colocá-lo na estante dos livros. Mas apanha pó. E escrever assim é uma mistura de folheto publicitário com texto de blogue humorístico sobre trivialidades.

Recomecemos.

Fumei o último cigarro. Mandei-lhe as baforadas para a cara. Ele também fumava. E devia estar desejoso de fumar. Fez-me um sorriso triste. Um olhar de quem não gosta. De quem está desconfortável. Agarrei-lhe no queixo e colocando a boca junto ao seu ouvido disse-lhe que ia sair. Que a companhia dele não era suficientemente agradável para eu ficar a seu lado. Gemeu. Entristeceu. Tu nem tens picha para mim. Nem sabes foder. Não te sabes mexer. E os minetes que fazes são um desatre. Nem com a língua sabes trabalhar. Deves pensar que estás a desinfectar uma ferida. Mas não. Um bom minete é com a boca toda. E os dedos a ajudar. É para afocinhares na minha cona. É para lamberes com a língua toda. Espatulada. E sugares. Sugares o que pende. O que se esconde. Descobrires com a ponta e lamberes por inteiro. Nem para isso serves. Que queres que te faça? Que posso eu fazer com um verme que não sabe servir-me sexualmente? Que faço? Amarro-o e vivo em função dele? Amarro-o e faço-lhe aquilo que ele quer? Mas quem serve quem? O que tu querias era que eu te enrabasse. Mas como tu queres eu não faço. Será o prémio. O prémio para quando aprenderes a lamber. Para quando me fizeres um minete decente. Como lambias tu as tuas namoradas? Como? Sim, baixa a cabeça. E dizes-te tu puta? Com dez anos já sabia lamber melhor que tu. Com cinco... Olhei nele e sorri. Puta...

Terminemos...

Mini-Preço


Andres Serrano - Self Portrait

Ela passou-me na frente com os sacos cheios. Carregada. Vergada sob o peso dos sacos. Ao passar por mim olhou-me em desespero. Eu que me sinto sozinha olhei-me nos olhos delas. Eu que vagueio, que me dou sem me dar, que utopicamente penso em encontrá-lo, que sou escrava da ilusão, e da realidade. Eu. Olhei-a e vi os meus olhos. Vi a minha expressão de solidão. De sermos sós. De sermos uma música para dançar a dois. Uma música para olhar através do ombro de alguém. Sem lágrimas. Com entendimento. Com uma ternura terrivelmente silenciosa. Esta ternura. Que é carne. Que são ossos. Que se expele pelos poros. Uma ternura de enlouquecer. De me deitar com os olhos rasos de lágrimas. De querer. De querer. De me perguntar o que me falta. De saber. De saber. De me vigarizar. E fazer batota. Sim, faço batota comigo mesma. Sabendo que o faço. Procurando ganhar. Sabendo que ninguém ganha. Assim, não. Assim não se ganha. Mas o jogo... eu não fixo as cartas. Nem sei a pontuação. Batota.

Os rissóis congelados dentro da embalagem estavam verdes de podre. No centro manchas castanhas a acabar em azul. Fritei-os. Comi-os. A todos. Aos seis. Estragados. Rissóis de camarão estragados. Coloridos. Com bolor, verdete, musgo, vermes, bactérias. Por cima deitei-lhes vinagre. E maionese azeda. Comi tudo. Tudo. Espremi laranjas podres e limões. Juntei-lhes claras de ovo e graxa de sapatos. Bati na liquidificadora. Bebi. Bebi tudo. E nada. Não sinto nada. Não sinto uma leve azia. Não sinto uma dor no estômago. Não me debruço e uivo. Não me castigo. Não me redimo. Nada. Nada. A mim não me acontece nada. Não sofro. Não dói. Nada.

Se bebesse embebedava-me. Até à coma. Se me drogasse injectava-me. Até à overdose. Se conduzisse espetava-me num muro. Se andasse de metro atirava-me à linha. Resta-me o crime de ser como sou. O suicidio de viver. O assassínio de mim mesma. Mas o que eu queria mesmo era conseguir marcação na pedicure e não consegui.

Um quarto. Uma garrafa de whisky. Baratas. Delirium tremens? Um espelho. Uma mulher. Que não eu. Eu nem sou esta. Eu gosto de viver e de Liliana Felipe. E adoro estender roupa. Sinto o vento na rata. Na minha varanda pequena e estreita. Um dia fico lá presa. Sem que me prendam. Sem que me ponham de joelhos e me digam "mama". Isso é passado. E ele passou a tarde deitado a ler um livro. E eu deitada a ler um outro. Depois das visitas às lojas de antiguidades.

A mim cresceram-me as mamas aos trinta anos. Pode ser que aos quarenta me cresça uma picha. Aos quarenta. Pode ser.

Naperon


Ivan Pinkava

Foi numa capela. Uma pequena capela no campo. Numa colina seca. De terra clara e áspera. De sol amarelo quase branco que nascia a Oeste e se punha a Sul. Foi ali que a encontraram. Entre os escombros da capela. Entre pedras e pó. Fragmentos de frescos com bocas abertas em gritos. Parece que alguém tinha sido torturado. Que alguém tinha sofrido os horrores de ser diferente. De ter fé ou não ter. Não sei. Sei que ela tinha a cabeça rapada. Que vestia de preto e o corpo estava coberto de beijos milenares. Inicialmente estranharam-na. Uma santa careca. Vestida de negro e calças justas. Há quem diga que parece látex. Os locais riem-se pois a santa tem mais de quinhentos anos. Mas parece. Ou parecia. Começou a fazer milagres no dia em que a encontraram. Contam que de dia irradiava luz branca e há noite luz negra azulada. Que tocar-lhe na cabeça era assustadoramente luxurioso. As pessoas sentiam... não se sabe. Umas falavam em prazer, outras em amor. Houve quem após o toque se desfizesse em suor. Nunca teve nome. Chamavam-lhe a santa careca. Iluminava toda a parte Norte da capela.

Especial. Tu és especial. Tu és... uma puta literada. Choro ou rio? Sim, foi isso. Orgulho ou vergonha? Riso. Somente riso. Especial... Aprisionamo-nos nas palavras. Na imagem construída pelas palavras. Um golpe de revolta. Um deixar de escrever. Mas não consigo. Existe uma indisponibilidade nas pessoas. Uma vida. Paralela à minha. Que não toca. Ainda que queiram. Que se movimenta paralelamente à minha. Somos circunferências com centro no infinito. Ontem construí uma história. Deitada no sofá. Hoje desconstruo. A música era diferente e a minha mente estava pausada na almofada colorida. Existe uma verdade e sinceridade nele. Ainda que seja aquilo. Só aquilo. Ainda que queira aquilo. Só aquilo. Aliás, isto. Só isto. Três buracos. Ser reduzida a três buracos. É matar-me. É anular-me. É deixar de existir. O eu. O ser pensante. Que se lixem os meus olhos. E as minhas mãos. Três buracos.

Existe um homem que de mês a mês fala-me em... em amor. Em amor, Senhores. Uma vez por mês. Vou propor-lhe uma hora para que falemos de amor. Um dia e uma hora. Estou em dúvida se será melhor falar de amor à noite ou de manhã. Antes ou depois de jantar? E se o jantar for indigesto? Se tiver pimentos ou melão?
Mas ele diz-se especial. Pois fala-me de amor. Uma vez por mês.

Perdi-me. Eu queria falar-vos numa puta de uma santa careca. Perdi-me. Que se foda a puta da santa. Afinal era uma puta. Uma puta vestida de latex que viajou no tempo. Uma puta de cabeça rapada. Foi violada e torturada. Dilacerada e cuspida. Deixada em sangue. Esventrada. A pele esfolada. Bem feito. Quem a manda querer foder homens da idade média? Que raio de ideias têm as putas...

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Nação


Ruela Pinho

Vamos ouvi-la. Os dois. Nós os dois. Ouvi-la para que te explique. Para que sintas. O grande que sou. E o como me transformo em areia. Em pó. Ouvir. Ouvir com carícias. Ouvi-la. É de uma beleza atroz. De um horror em mim. Em ti. De um silêncio aterrador. Completo. Um silêncio de órgãos. De corpos. Como se todos deixassem de respirar. Se contivessem. Parassem. Imobilizassem os movimentos espontâneos. Os que não podemos controlar. Uma carícia. Uma carícia do tamanho do mundo. Tão grande... capaz de albergar-nos a todos. Eu. Tu. Eles. O mundo. E albergando, mantemo-nos únicos. Eu única. Tu único. Todos únicos. Ouve. Ouve. Desfaço-me perante esta melodia.

Indigno-me. Por pouco tempo. Sempre por pouco tempo. Nada em mim dura muito. Apenas a essência. A que não tem consistência. Nem rigidez. Nem cheiro. Nem nada. É tudo. É um aplauso. Um palco comigo em cima. Em silêncio. Rindo. Dançando. Tapada com um lençol. Que não uso.

Olho nela. Procuro nela uma humanidade. Para que possa continuar a olhá-la. Para que possa conseguir abrir-lhe a porta quando passar. Para que possa sorrir-lhe quando falar. Olho nela. E sinto-a. Sinto-a nada. Na força de nada ser. Na força de tudo ser. Incipiente. Olho nela. Já vomitei sobre ela. E sobre mim. Sobre os valores de merda dela. Sobre os quereres de merda dela. Ela que se acha moderna. E rebelde. Somos todos tão rebeldes. Uns rebeldes caprichosos de merda. Mas chamam rebeldia ao tomar drogas. Ao saltar em concertos de terra batida. Que rebeldes que somos! Ao apontar a que se deita com o homem casado. Que rebeldes que somos nesta mesquinhez de conservadorismo mental. Mas somos rebeldes. Afinal temos filhos pequeninos. Criamos filhos pequeninos e ouvimos Sex Pistols. Somos uns rebeldes de merda. Uma merda é o que somos.

Anoitece. Em frente uma janela. Jantarei os restos do almoço. O almoço foram restos do jantar de ontem. Enganei-me. Amanhece. Amanhece comigo dentro. Numa bolha. Numa bola de sabão. Pum! Rebenta puta. Janto agora ou mais à noite?

Tenho sono. Tenho sono. E porque não me deito? Porque sonho. E sonho. E não quero. Sonhar é aflitivo. É não ser eu e nada ser tudo. E... e tudo ser nada. Que vai. Vem. Desaparece. E volta. E não há controlo. Nem há emoções minhas. É tudo de fora. De fora para dentro. É uma bomba que transporto na mão. Que deixo esquecida ali. Mas sem querer e porque não há querer, volto a agarrar.

Ele recuperou. Recuperou tão bem que morreu. Rimos. E caso queiram que paguemos o funeral que o desenterrem. Desenterrem e fiquem com os ossos. E o caixão para fazer palitos. Que o levem. E o deitem ao mar. E rimos. Rimos porque só assim. Só assim se justifica a morte. Com gargalhadas. Com sarcasmo e ironia. Só assim. E a exigência do café no velório. Que café? De que marca? Não. Nespresso não. É doce. É italiano. Queremos português amargo. Forte. Áspero. E se deixar borra eu gosto. Se me queimar a língua eu gosto. Se me provocar lágrimas eu gosto. É como a beleza. Se simétrica nada a dizer nem descobrir. Por isso gosto de marinheiros. Os marinheiros de Jean Genet. Secos e ásperos. Rugosos de dedos grossos. De olhares enublados de sal e de horizontes.Os idealistas de Hemingway. De sonhos rosáceos marinhos e fados nascidos em berços de rede. Os meus. Os que vesti com roupas de mulher. Os que fodi em camas sem lençois. Os que me puseram um olho negro.Personagens míticas e místicas. Para mim. Porque aos mais rudes mais amor lhes é permitido. Porque os que mais vagueiam arriscam no agora. Porque não há nada a perder quando o cais de desembarque de hoje será o de embarque de amanhã. Os meus marinheiros. Os meus estivadores. Os meus operários. Por vezes, somente por vezes, mas por vezes, deitada nua em pensões baratas sinto-me... marxista.

Existe um local para onde sempre volto. Sempre que quero. Sempre que preciso. Sempre que não consigo mais ajoelhar-me. Esperar. Aguardar por uma mão em mim. É secreto. Um canavial. Uma praia. Um monte. Estrelas. Céu a perder. Num corpo. O meu. Só meu. Existe um local. Dentro de mim.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

velório


Veloso - Ruído Azul

Os pés colavam-se ao chão e eu senti que deveria responder. Prontamente comecei a responder. Mas assim que comecei algo me fez desistir. Uma força contrária. Um cepticismo de pele. Uma falta de fé. Para quê? Para quê? Valerá a pena? É importante para ti? É importante para quem? São as tuas mazelas. Deixa-o. São tuas. Deixa-o. Não existe possibilidade de reencontro. Deita-te e chora. Ou deita-te e lê. Senta-te e escreve. Faz o almoço. Ou o jantar. Folheia um livro. Chama alguém para te fazer companhia. Deita-te no chão e sente a madeira. Ou na sanita e arranja as unhas. Para quê? Para quê? Deixa. Bebe água. Bebe vinho. Bebe. Embriaga os outros e sente inveja. Ri com a bebedeira dos outros. Que alguém possa...

Uma vida de controle. Aparente. Uma vida. A minha vida de controle aparente. A minha calma. Aparente. A minha assexualidade. Aparente. O meu lesbianismo. Aparente. O meu profissionalismo. Aparente. A minha eficiência. Aparente. A minha cultura. Aparente. A minha ignorância. Aparente. Aparente. Aparente. Quero eu tudo isto que me colocaram à porta de entrada? Os correios despejaram-me aqui um monte de coisas. Disseram que foram enviadas por ti. E por ti. Por ele. E por ela. Quero eu? Mandei eu vir? Comprei? Demonstrei desejo? Quero? Não sei. Mas tudo, não. Vou devolver. Não pago. Não pagarei. A minha mãe ensinou-me a dobrar papel. A fazer origami. Ela chamava-lhe de dobragens. Cisnes. Gatos. Cães. Patos. Andorinhas. Nossas Senhoras. Esqueci. Esqueci como se dobra o papel. Repreendi a usá-lo. Mas ele prende-se-me nas mãos e não vinca. Enfola. Como o barro se cansava de mim. Eu que não sabia o que lhe fazer. Fumando cigarros à porta. À chuva. Nas escadas. Nesse tempo eu era eu e eu. Como se tivesse as costelas coladas ao céu da boca. Estranho. O cabelo caía-me pela cara e protegia-me do olhar de quem subia. Estranho. Ele só me deu a mão. No dia. naquele dia.

Pergunto-me se deixei algo por dizer. E se sim a quem? A quem? Eu que tento dizer o mais importante primeiro. Deixei? Quantas coisas deixei de dizer? Quantas ocultei? E porquê? Aqui. Agora. Digo. Afirmo. As minhas mãos... As minhas mãos estão tensas e quentes. Mastigam-me o corpo. Fazem-me ter desejo de as arrancar. De sentir estas mãos como não minhas. Longe do meu corpo. Longe dos meus braços. Longe das carícias. Longe dos afagos. Chegar. Descalçar. Despir. Cuecas e soutien. E mãos. Mãos no despeja bolsos. Mãos na mesa da entrada. Mãos sobre as facturas e recibos da entrada. Mãos junto aos sapatos na entrada. Coloco umas outras. Para que possa cozinhar. Para que possa apanhar roupa. Masturbar. Tocar. Coloco outras mãos. Coloco as tuas. Coloco as tuas mãos.

lavagem


Vlad Gansovsky

É importante. É importante que consigas reunir as tuas coisas e desapareças de seguida. Rápido. Muito rápido. Tens de fugir antes que eles cheguem.

O saco azul bailava na rua. O homem acompanhado dos seus dois filhos olhava nas ancas da rapariga de vestido justo. Eu olhava nele. Desviou a cabeça e posicionou o corpo de forma a poder olhá-la sem esforço. Eu olhava nele e ele sabia-o. Sabia que eu tinha notado a sua erecção. A erecção por miúdas da idade dos seus dois filhos. Procurou ficar de costas para mim, por desconforto. Mas sentiu-se ainda pior. Eu observava-o e ele a mim não. Optou por ficar de lado de forma a poder controlar o corpo dentro do vestido azul e amarelo. Com um pequeno movimento poderia ver-me e indagar se realmente eu o olhava. A rapariga fingia não dar por nada. Eu mantinha o olhar firme nele.

À janela uma mulher encostada olhava na rua. Eu não conseguia ver para onde olhava. Tentei imaginar. Uma família de três. Pai, mãe e filho. O sonho tornado realidade. Um bebé entre duas pessoas. Um bebé para justificar o amor entre duas pessoas. A mulher sem cintura e o homem calvo. E a felicidade de existir um bebé que crescerá e justificará a vida dos dois. Por quem se sacrificarão. Por quem se desculparão pela falta de tempo. Pela falta de investimento neles mesmos. A mulher na janela olha. Revê-se. Agora o bebé não é bebé e ela posiciona-se na janela do terceiro andar olhando para outros que a imitam. Sem interesse. Nem desdém. Não há conhecimento de nada mais. E não existindo não se deseja diferente. É. Encosto-me e observo. A vida é isto. Uma janela. Onde encostar. Onde descansar e ver. A vida dos outros. A vida que vivi. Eu tenho dois filhos mas já vivi muito - dizia ela. Eu fiquei em silêncio. Que dizer? Que dizer perante este cadáver?

Ele olhou em mim. Surpreso. És tu? A mesma? Sorri. Sim, sou. Sim, estou diferente. Existe agora uma luz clara onde antes estava uma florescência baça. Sim, sou eu. A mesma. Redimi-me dos meus pecados e mantenho-me assim de cara lavada. As águas que banham Lisboa passam na Palestina. Mas falemos do morto. Está morto? Ou finge? Finge-se morto por não querer viver? Apostamos? Eu que só gosto de apostar livros retiro uma nota da mala e coloco-a sobre o balcão. Mas tudo se esfuma com o aparecimento da funerária. Eles riem-se. Eu começo a duvidar da minha existência. Penso em sair dali e viajar no tempo. Nas palavras que aprendi em miúda e que tem poderes de mutações mil. Invoco o deus das pequenas coisas e vou-me, após retirar a nota de cima do balcão. Pode fazer-me falta no futuro.

Como estás? Bem. Bem, obrigado. Sim, obrigado. Está tudo bem, obrigado. Queres levar a alface? E as cenouras? Sim, levo. Levo tudo o que não queiras, mas não tenho de levar. Sabes alguma coisa dele? Não, ainda não. Minto. Faltam cinco minutos para ir. Tenho as malas prontas, é só terminar isto. Isto que escrevo, sem sentido. Já ouviste falar no amarelo? Amarelo gema? Toca à campainha quando chegares. Para que saiba que chegaste. Para que saiba que não vens.

domingo, 2 de agosto de 2009

direcções


Eugene Atget - Prostitute

Blá, blá, bá, blá, blá, bá.
Blá, blá, blá, blá. Blá, blá, blá, blá, blá, blá. Blá. Blá. Blá, blá, blá. Blá, blá, blá, blá, blá, blá. Blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá...

Ai.
Ui.
Ai.
Ui.
Ui. Ui. Ui. Ai. Ai. Ai. Ui.
Ai. Ui.
Ai.
Ui.

Blá, blá, bá, blá, blá, bá. Blá, blá, blá, blá. Blá, blá, blá, blá, blá, blá. Blá. Blá. Blá, blá, blá. Blá, blá, blá, blá, blá, blá. Blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá. Blá.

Passa-me o cinzeiro.

liberdades


Paula Rosa


Que horas são? Diz-me as horas. Diz-me se são horas de vires. De vires ao meu encontro. Ou se são horas de partir. De partires. De eu partir. De virarmos as costas. De morrer em nós este desejo. Porque morrerá. Se consumado. Morre. Morre. Morrer pelo corpo. Vou falar-te dele. De como o amo. Ou amei. Ou me iludi. De como adorei a ideia do amor por ele. De como gostei da ideia do amor por ele. Tenho de escrever rápido. De ser rápida. Não estou sozinha. E eles falam. Conversam. Não me deixam escrever. Concentrar. Vou falar-te dele. Do poço de afecto que ele tem na filha. E de como a esse poço não há afecto que escape. Em como não sobra. Sobra apenas uma boca. E um caralho. Sobre o corpo. E nas asas. Nas asas...

As janelas estão abertas. Mas fecharei a porta. Interessante. Sabes, ele queria-me. Queria-me para poder realizar as fantasias que tinha. As que não tinha tido coragem de realizar. Ter-me a seu lado para poder ter coragem de... deixando-me depois ali largada. Sozinha. Eu sei. Culpa minha. Responsabilidade minha. Vibro muito. Sou incapaz de me calar. De deixar de me exprimir. De dizer o que me dá tusa. Porque eu vou. Tu sabes que eu vou. E faço. Sozinha ou não. Vou. E ele sabe. Sabe que eu vou. E ele sozinho não vai. Nunca foi. Não irá. Porque eu nada tenho a perder e os meus medos são outros. Mas tudo bem. Não foi somente ele. Foi o outro. E o outro. E o outro. Porque nas relações de afecto deixamos de ir às prostitutas. Deixamos de nos vestir e calçar saltos altos. Deixamos de fazer orgias. Deixamos os butt plugs apodrecerem. Porque deixamos de seduzir. Sim, sou a puta-mor. E como todos os ladrões todas as putas se querem sós. Pois seja. Rio. Rio-me. E choro. E sem vergonha. Sem culpa. É. É. Ponto final. Viverei se quiser. O que quiser. E entro e saio do carrossel. Não me prendo. Não me prenderei. Afinal existe também a montanha russa e o algodão doce. E um banco de jardim onde descansar as pernas. Sinto-me feliz. A angústia está cá. Sim. Sinto-a. Mas a felicidade também. Sinto-me rica. Ainda que muitas vezes em círculos. Sinto-me corajosa. Ainda que adie. E abro as pernas e masturbo-me. Venho-me em todos vós. Ejaculo em todos vós. Gemo alto em todos vós. De mim terão apenas este barulho irritante de Ais e Uis. Altos. Altos. De mim terão apenas esta pele. Porque é somente isso que posso dar a quem não sabe receber mais. Mas por agora não. Por agora recolho-me nesta toca e mando vir. Mandarei vir homens que se ajoelhem a meus pés e me lambam. Serviçais. Bonitos. Tímidos. Existe sempre a esperança. Em mim. A miserável. A desgraçada. A viva. E isto escrevi há uns tempos. Uma largada. Uma raiva. Que já não tenho. Que já não sinto. Foi há uns tempos. Agora basto-me. Aqui. Foi há uns tempos. Quando a música era intensa.

Troca de boneco comigo. Troca de sapatos. Troca de baton. Troca de seringa. Troca de carro.

sábado, 1 de agosto de 2009

putas comunistas


Rui Effe

Fêmea. Macho. Par. Fêma. Fêmea. Par. Um par de sapatos debaixo da cama. Sabes quem sou? Sim, sei que sabes. Ou calculas. Calculas que sabes. E eu afirmo. Afirmo que o galo é o dono dos ovos. Existe uma viola. E uma voz. No fundo. No fundo dos teus olhos. Esta tarde sonhei que me apaixonava. E depois tive vontade de urinar. Acordei. Fazia xixi sentada, apoiada nas pernas. E ele escorria e molhava-me as pernas, as cuecas, a saia. Enquanto o fazia pensava no João. Nesse homem longíquo. No que foi meu companheiro quando era miúda. Quando a minha boca era fresca e sã. Quando tinha dentes e sorria ao olhar nas minhas mãos. João. O João do entorpecimento. Porque é nome de gato. E nome de gente. O João que se chamava Joáu para os amigos. Para quem falava castelhano. O que voou comigo. E ficou. Eu vim. E voltei. O pai dos 3 filhos. O ex-marido de 3 mulheres. De muitas mais. De mim também que com ele nunca casei. Homem vaidoso o João. Como todos os Joões? Não sei. Conheço apenas alguns. A ti. E a ti. Homem com porte o João. Não tu. O meu João. O que vindimava deitado. E adormecia a conduzir. Tinha mãos. E boca. E no início suávamos muito. O João que me levava ao ginásio onde me sentava a fumar cigarros com um livro na mão. E à piscina onde me punha vestida à sombra a fumar cigarros e de livro na mão. Ele saltava. E corria. E levantava as pernas. Eu olhava e sorria. Sentada. Empurrávamos a 4L de manhã. E caíamos na lama. Mas sempre nos levantámos. Ainda que existisse uma alergia em nós. Ao trabalho. E à roupa lavada. E andámos de barco. E dormimos em tendas e em quartos. Em escondidinhos de Intendente. Em colchões sem lençóis. Em mesinhas de cabeceira partidas. De gavetas inarráveis. Não, não conto. Não contarei. Prefiro romancear que emporcalhar. Mentirosa. Mentirosa eu. Tenho uma mala em forma de bota, de cor rosa, pendurada na parede. Está a ficar amarela. Pergunto-me onde fui buscar tanta coisa? Como enchi eu esta casa de trastes e objectos? Como me apeguei eu a tudo isto? Eu que sempre viajei de mala de mão. Que nunca tive muitos pares de meias. Que me basto com um garfo e uma faca. A mão serve de colher. Ou um copo. Eu que atei o cabelo no topo da cabeça com cuecas. Por não ter elástico. Porque também dava. E deu. Uma. Duas. Várias vezes. Eu que dou o que me dão. Que ainda que seja caro e bom dou. Porque não quero. Porque não necessito. E lembras daquela noite em que a estrada estava negra? E era longe. parecia tão longe o nosso ninho. E dormíamos. Na estrada. Calados. Eu lembro. E foi uma noite banal. Porque me lembro? Porque me lembro eu daquela estrada? E daquela noite? Amanhã vou vê-los. Aos dois. Aos quatro. Aos seis. Perder-me nas conversas. Eu que tenho tão pouco a dizer. Ou sinto. Eu que me apetecia perder a voz. Ficar somente com estes dedos. Não ter de dizer, Sim, Não, amanhã, Ontem, Talvez, Vou. Sem voz. Talvez na quarta. Talvez na quarta eu fique sem fala. E sem respiração. Vou aprender a fazer a fotossíntese. A minha máquina da roupa apita quando termina. É um apito agradável. Melodioso. Por vezes penso que poderia cantar. Ou chamar por mim. A minha impressora também fala. Diz que a impressão terminou. Tem sotaque brasileiro a minha impressora. Os meus vizinhos conversam. E discutem na rua. E partem vidros. E os do lado imitam-nos. Todos eles falam. Todos eles gritam. E agora a Etelvina. Eu que sou malcriada. Sim, simpatizo com a Etelvina. Tenho-lhe o amor que tenho a mim. Etelvina e eu. Se me calar ninguém notará. Há sempre quem fale. Se me calar. Se me silenciar. Se cerrar a boca. Há sempre alguém que fala.

Bounty


Albano Ruela - Bona Lisa

Queres amor? Queres? Pois espera. Senta-te e espera. Nessa cadeira plástica castanha. Tu que detestas castanho. Que é uma cor que não é nada. Feia. Escura podendo ser clara. Sem sabor. Com cor de fezes. Senta nessa cadeira plástica castanha que te envolve o rabo em malga. Senta. Com as costas tortas e o corpo afundado. Entorta-te nessa cadeira castanha. Espera. Lembras dos dias em que esperavas por pão com manteiga? É semelhante. E a mão que o dá poderá ou não aparecer. Se existir pão quente. E se existir manteiga. Ou faz de conta. Faz de conta que marcaste. Pão com manteiga dia 12 de Novembro de 2030 pelas 15:43. Agora é só aguardar. Esperar. Pelo dia do pão quente com manteiga.

Oh pobre alma mas crês que com esses jogos me conquistas? Eu, que cobra, rastejo aqui à uma eternidade? Eu que consigo fazê-los pensar que são todos especiais. Que todos estes textos são para eles. Todos me lêem e revêem. Todos pensam que falo neles. E falo em algum? Por vezes. Por vezes. Mas sei onde e quem. E sei quem se engana. Quem se ilude. Sei. Mas traz-me esse copo vazio para que o lave. E esse outro aí do lado. Não chores. A loiça quer-se bem lavada e as lágrimas têm gordura agarrada. És uma Mariana, uma cigana. Uma descrente. Mais uma que não reza. Que não acredita. Que amargura nestes dias de telefones e montras. De venha a mim rápido. Venha a mim o que se compra. Tudo o que se compra. Tu que gostas que te dêem coisas que não se compram. Que se constroem, que se roubam, que se imaginam, que se encontram. Pedras, terra, areia. Lembro-me do dia em que comeste terra. Lembras? Soube a... terra. Soube ao cheiro. Mais próximo que qualquer outro alimento. Mais.

Assim que acabar este texto vou limpar este teclado. Imundo...

Existe uma música que me impulsiona. Que me faz feliz. Que diz não existir mais ninguém a quem torturar. E é. É. É uma violência se o fizer. Eu que adoro amarrá-los e dedilhar na frente deles. De senti-los a crescer. De observar os espasmos. O desejo. Mas puta. Sempre puta. Sempre a querer. Sempre a querer finalizar. Sou incapaz de não terminar. De não me enterrar. E a música fala de Berlim. Onde te perdeste. Onde me perdi. Entrei num autocarro e só saí quando ele terminou. E repeti-me nesse andar sem destino. Não quis saber dos museus. Nem da história. Nem dos monumentos. Nem do Charlie. Nem de nada. Quis apenas perder-me. Se pudesse perdia-me no mundo. Vagueava. Procurando. Procurando-te em todos os homens. Em todas as mulheres. Faço enterros. Quantos enterros faço por dia? Quantas covas tenho de abrir? Tenho calos. E a puta da pá que está gasta. Despeço-me. Vou antes casar iludidos. Vê-los vestidos de branco. Até. Até que um deles decida perder-se nos braços de um outro vestido de vermelho. Que insanidade. Que estupidez. Como é possível comprarmos a fidelidade? Acreditarmos nela? Como se 10 anos fossem os dois primeiros meses.

Eu tenho um cinto de ligas preto. Quando o coloco sinto-me a Miss Piggy. A porca.