sábado, 8 de agosto de 2009

Há gente a gritar na rua


Luís Durão

Deito-me ou mantenho-me acordada? Já não sei o que fazer. Que fazemos às sete da manhã de Sábado? Sós. Lemos. Já li tudo o que havia a ler. Ressinto quem não escreve para que eu leia. Não me apetece ler papel. Apetece-me ler com os olhos. Não com as mãos. Apetece-me ler na luz. Não na escuridão. Lá fora lavam as ruas. A água. O som. Os gritos. Fecha. Abre. Pintar paredes? Sair para a rua. Debruçar-me lá em cima. Ver a ponte. O rio. Os barcos. O lixo no chão. A rede. Ver pela rede.

Parece que foi de manhã. A carroça chegou ainda era de noite. Levou o corpo. A mulher de bigode moreno. A que sorria à nossa passagem. E que dava broas com pinhões. Parece que foi de manhã. O corpo pequeno. Curvado. O peso de se ser sorriso numa vida pesada. De ser vaca, boi, asno. De ser terra e cascas de favas. Para o gado. De alimentar galinhas com ervas de valeta. Parece que foi de manhã. Numa carroça. Na rua suja de cocó de ovelha. Salto aqui. Salto acolá. Falhei. Esfrega na erva. Salto aqui. Salto acolá. Eu não. Vamos seguir o rio e perdermo-nos nas hortas. No caminho velho que agora está alcatroado. Assassinado. As minhas memórias enterradas. Em pontes romanas acimentadas. Em quintas napoleónicas pintadas de rosa. Em pombais arruinados. E o vizinho já não toca as canções do antigamente. Agora existem play lists. E rádios.


Ele assinou M. Eu pensava que era P. E antes J. Eu que sou C. e A. e V. E... e uma prostituta. Uma prostituta. Somos umas prostitutas.

O Cais do Sodré cheira a hortaliça podre. Resta-lhe esse cheiro. Somente esse cheiro. Já tem clínicas de estética. E meninas de Cascais. Os hits de Verão com coreografias. A fazer lembrar Praga. E os homens feios de Praga. De bigode e olhar duro. As mulheres bonitas de Praga. Sensuais e femininas. A ela comi-as. Traz-me um recuerdo. Um recuerdo em forma de falo. Ou de marionete. Ou de prato. Um galo de Barcelos. Um saco do pão. Uma camisola de lã branca. Traz-me um pratinho com o meu nome gravado a azul. Se couber. Se o prato for grande. Ou mandas gravar "Eu". Apenas eu. O meu nome. Ou um prato em branco.


Eu podia trabalhar por turnos. E fazer três ou quatro de seguida. Talvez assim dormisse. Talvez. Ser vigilante numa fábrica. De noite. De dia. Numa fábrica com chaminés altas e fumo colorido. Luzes dançantes. Focos e cheiros nauseabundos. Vestia farda. E apertava as calças na cintura. Para me sentir uma foca. Colocava um anúncio procurando noivo. Apresentava-me como uma romântica. Que gosta de rosas e ganchos no cabelo. Que gosta de golfinhos e bonecas de porcelana. De ursinhos de peluche e almofadas em forma de coração. Em veludo. Fofinhas. Fofinhas. Depois escrevia poemas. Sobre o pôr-do-sol. Sobre leões e passarinhos. Escrevia poesia sobre beijos sensuais em mamilos rosáceos. Sobre peles macias em mãos de dedos finos e travessos. Calçava sapatos de verniz verde. Ou lilás. E saias rodadas brancas com padrões coloridos. Camisolas de renda azul bebé e casacos de fazenda xadrez. Pavorosamente romântica. Pavorosamente idealista. Pavorosamente alegre. Pavorosamente feliz.

Sangro. Vou comprar tampões.

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