quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Mini-Preço


Andres Serrano - Self Portrait

Ela passou-me na frente com os sacos cheios. Carregada. Vergada sob o peso dos sacos. Ao passar por mim olhou-me em desespero. Eu que me sinto sozinha olhei-me nos olhos delas. Eu que vagueio, que me dou sem me dar, que utopicamente penso em encontrá-lo, que sou escrava da ilusão, e da realidade. Eu. Olhei-a e vi os meus olhos. Vi a minha expressão de solidão. De sermos sós. De sermos uma música para dançar a dois. Uma música para olhar através do ombro de alguém. Sem lágrimas. Com entendimento. Com uma ternura terrivelmente silenciosa. Esta ternura. Que é carne. Que são ossos. Que se expele pelos poros. Uma ternura de enlouquecer. De me deitar com os olhos rasos de lágrimas. De querer. De querer. De me perguntar o que me falta. De saber. De saber. De me vigarizar. E fazer batota. Sim, faço batota comigo mesma. Sabendo que o faço. Procurando ganhar. Sabendo que ninguém ganha. Assim, não. Assim não se ganha. Mas o jogo... eu não fixo as cartas. Nem sei a pontuação. Batota.

Os rissóis congelados dentro da embalagem estavam verdes de podre. No centro manchas castanhas a acabar em azul. Fritei-os. Comi-os. A todos. Aos seis. Estragados. Rissóis de camarão estragados. Coloridos. Com bolor, verdete, musgo, vermes, bactérias. Por cima deitei-lhes vinagre. E maionese azeda. Comi tudo. Tudo. Espremi laranjas podres e limões. Juntei-lhes claras de ovo e graxa de sapatos. Bati na liquidificadora. Bebi. Bebi tudo. E nada. Não sinto nada. Não sinto uma leve azia. Não sinto uma dor no estômago. Não me debruço e uivo. Não me castigo. Não me redimo. Nada. Nada. A mim não me acontece nada. Não sofro. Não dói. Nada.

Se bebesse embebedava-me. Até à coma. Se me drogasse injectava-me. Até à overdose. Se conduzisse espetava-me num muro. Se andasse de metro atirava-me à linha. Resta-me o crime de ser como sou. O suicidio de viver. O assassínio de mim mesma. Mas o que eu queria mesmo era conseguir marcação na pedicure e não consegui.

Um quarto. Uma garrafa de whisky. Baratas. Delirium tremens? Um espelho. Uma mulher. Que não eu. Eu nem sou esta. Eu gosto de viver e de Liliana Felipe. E adoro estender roupa. Sinto o vento na rata. Na minha varanda pequena e estreita. Um dia fico lá presa. Sem que me prendam. Sem que me ponham de joelhos e me digam "mama". Isso é passado. E ele passou a tarde deitado a ler um livro. E eu deitada a ler um outro. Depois das visitas às lojas de antiguidades.

A mim cresceram-me as mamas aos trinta anos. Pode ser que aos quarenta me cresça uma picha. Aos quarenta. Pode ser.

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