quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Canto(-te)


Nicholas Sinclair - Franko B

Passei. Rápida. Passo largo. Olhei ao lado. Procurando um banco para me sentar. Não um descanço. Uma desculpa. Uma desculpa para fumar um cigarro. No lado, durante cinco passos. Olhei-o. Mantive o passo. Parei. Após mais uns passos. Parei na imagem guardada. Virei-me. Olhei-o. Ele em mim. Mantive o olhar. Nele. Naqueles olhos com cataratas. Chorões. Molhados. Castanhos cinza. Opacos. Um olhar em mim e o meu olhar nele. Aproximei-me. Mexendo na mala. Revolvendo a mala. A carteira. Ele olhando em mim. Baixa os olhos. Perto. Desconforto. Meu. Dele. Ofereço-me para ajudar. Nega. Espanto-me. Entristeço. Moscas rodeiam-lhe os pés. Perto vi porquê. Porquê... Falei-lhe. O dever. Levá-lo a um hospital. O fácil. Dar dinheiro. Despejar dinheiro em cima dos problemas. Da culpa. Da minha culpa. Acariciar a minha felicidade com uma esmola. Um estranho. Para sempre um estranho. O olhar de medo em mim. Em mim... se me teme o que não teme? A mim. A que o viu durante cinco passos.

A mãe senta-se no banco ao sol. O pai senta-se no banco à sombra. Na frente. Na frente dela. Na frente dele. O miúdo pára junto ao pai. Indeciso. Será que está indeciso? Olha num objecto que tem na mão. Com feições de aborrecimento. Será que se zangaram? Entre eles um rio. Uma brecha na terra. Ela está de óculos. Pode olhar neles. Ou não. Conflito. Sinto-a bela. Ali. Sentada. De perna cruzada ao sol. De cabelo revolto. Espesso. À que não vejo os olhos. Sinto o conflito. Em vinte passos. O miúdo não ergue os olhos. E não se senta. O pai debruça-se. Apoia os cotovelos nos joelhos. Olha na água. Ou nela? Zangados? Ou simplesmente tendo prazer na solidão? Eu que fico sempre em dúvida. Onde começa? Onde acaba? Temos direito. Quando? Sinto que o miúdo se pudesse alcançava-a. Se entre os dois não existisse a água. Um rego de água. Ele olha-a. Depois de se cansar de olhar no objecto. Depois de perdoá-la?

Era uma esquina. Assim de repente. Vindo do nada uma imagem clara. Junto aos contentores coloridos. Uma imagem clara. Ainda que à sombra. Ainda que semi-oculto. O tempo de dar três dos meus passos. Que claridade. Que arrependimento não ter dado um passo atrás. Mas senti-me a caminhar pela sua intimidade. Na sua casa. Entrei-lhe pela casa dentro. Perdoa-me. Magro. Magro. Devia ser alto. Nu. Vi-lhe o peito. As pernas. Os ossos. Os olhos azuis. O cabelo ralo. Numa posição de fome. Na posição de dor. A posição em que vemos tantos. E tantos. Sentado de pernas esticadas semi-dobradas. Os joelhos. E uma luz. Aquela luz era por certo a sua companheira. Acariciava-lo. Mantinha-se a seu lado. Protegia-o. E protegeu. Eu apenas dei três passos. Segui. Segui com vontade de voltar atrás e rever. Revê-lo. A ele. À luz.

Passa por mim. Passo a passo avança. Dá-me avanço. Tem umas pernas do tamanho do meu corpo. Magras. Cintadas em ganga azul. Cabelo comprido. Castanho com nuances claras. Uma cabeleira que lhe cai sobre as costas e ombros estreitos, morenos. Sinto-os salgados. Secos. Da praia. Do sol. Da areia. Os braços de pele baça. Um rabo pequeno. Uma nádega enchia-me a mão. Somente uma. Uma mão. Mais um passo. Afasta-se. As pernas. Que pernas... O movimento. Perco-a. Na multidão. Reencontro-a nas escadas. Os saltos altos soltam-se-lhe dos pés. Manca. Coxeia. Treme. Passo por ela. Avanço. Dou-lhe avanço ainda que quisesse tê-la pela frente. Eu nas costas. Observando em passos o movimento daquelas pernas. Daquele cu que me caberia nas mãos.

Três passos depois da passadeira. Dei apenas três e no chão ao longe vi uns pés. Tristemente metidos, enrolados, enfiados, enrodilhados numas sandálias azul bebé. Dedos que saltam, que se rebeliam, que se desprendem e escorregam para fora do apoio das sandálias. Num passo apreciei a revolta dos dedos. Daqueles dedos de unhas vermelhas. Daqueles dedos morenos cintados por correias azul bebé. Feitos prisioneiros. Mais um passo e procuro olhar na proprietária daqueles dedos. Daqueles pés. Cambaleante nas sandálias de plataforma altas. Muito altas. Subo o olhar até ela. Até ela ser gente na minha mente. Pelos meus olhos. No olhar dela. Mas antes uma exclamação. Uma admiração. Um absurdo. Um ridículo. Um andar... sofrido. Desnorteado. Um andar que podia ser confortável torna-se... porquê? Penso. Porquê? Empina-se o rabo? Pois que se empine de quatro. Não de pé. Não escrava. O meu olhar reprovador na mulher de corpo pequeno e anca larga. O meu olhar moralista. O meu olhar acusador. Inquisidor. E em dois passos o arrependimento. A culpa de ser assim. Em dois passos. Os passos suficientes para no olhar dela ver o desconforto do meu. Para no olhar dela ver um ama-me. Para no olhar dela ver sente-me bonita. Para num olhar dela ler só quero parecer especial. Dois passos. Podia ter sorrido. Pena não ter sorrido. Sorrido àquela mulher que só queria ser especial.

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