segunda-feira, 3 de agosto de 2009

lavagem


Vlad Gansovsky

É importante. É importante que consigas reunir as tuas coisas e desapareças de seguida. Rápido. Muito rápido. Tens de fugir antes que eles cheguem.

O saco azul bailava na rua. O homem acompanhado dos seus dois filhos olhava nas ancas da rapariga de vestido justo. Eu olhava nele. Desviou a cabeça e posicionou o corpo de forma a poder olhá-la sem esforço. Eu olhava nele e ele sabia-o. Sabia que eu tinha notado a sua erecção. A erecção por miúdas da idade dos seus dois filhos. Procurou ficar de costas para mim, por desconforto. Mas sentiu-se ainda pior. Eu observava-o e ele a mim não. Optou por ficar de lado de forma a poder controlar o corpo dentro do vestido azul e amarelo. Com um pequeno movimento poderia ver-me e indagar se realmente eu o olhava. A rapariga fingia não dar por nada. Eu mantinha o olhar firme nele.

À janela uma mulher encostada olhava na rua. Eu não conseguia ver para onde olhava. Tentei imaginar. Uma família de três. Pai, mãe e filho. O sonho tornado realidade. Um bebé entre duas pessoas. Um bebé para justificar o amor entre duas pessoas. A mulher sem cintura e o homem calvo. E a felicidade de existir um bebé que crescerá e justificará a vida dos dois. Por quem se sacrificarão. Por quem se desculparão pela falta de tempo. Pela falta de investimento neles mesmos. A mulher na janela olha. Revê-se. Agora o bebé não é bebé e ela posiciona-se na janela do terceiro andar olhando para outros que a imitam. Sem interesse. Nem desdém. Não há conhecimento de nada mais. E não existindo não se deseja diferente. É. Encosto-me e observo. A vida é isto. Uma janela. Onde encostar. Onde descansar e ver. A vida dos outros. A vida que vivi. Eu tenho dois filhos mas já vivi muito - dizia ela. Eu fiquei em silêncio. Que dizer? Que dizer perante este cadáver?

Ele olhou em mim. Surpreso. És tu? A mesma? Sorri. Sim, sou. Sim, estou diferente. Existe agora uma luz clara onde antes estava uma florescência baça. Sim, sou eu. A mesma. Redimi-me dos meus pecados e mantenho-me assim de cara lavada. As águas que banham Lisboa passam na Palestina. Mas falemos do morto. Está morto? Ou finge? Finge-se morto por não querer viver? Apostamos? Eu que só gosto de apostar livros retiro uma nota da mala e coloco-a sobre o balcão. Mas tudo se esfuma com o aparecimento da funerária. Eles riem-se. Eu começo a duvidar da minha existência. Penso em sair dali e viajar no tempo. Nas palavras que aprendi em miúda e que tem poderes de mutações mil. Invoco o deus das pequenas coisas e vou-me, após retirar a nota de cima do balcão. Pode fazer-me falta no futuro.

Como estás? Bem. Bem, obrigado. Sim, obrigado. Está tudo bem, obrigado. Queres levar a alface? E as cenouras? Sim, levo. Levo tudo o que não queiras, mas não tenho de levar. Sabes alguma coisa dele? Não, ainda não. Minto. Faltam cinco minutos para ir. Tenho as malas prontas, é só terminar isto. Isto que escrevo, sem sentido. Já ouviste falar no amarelo? Amarelo gema? Toca à campainha quando chegares. Para que saiba que chegaste. Para que saiba que não vens.

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