segunda-feira, 3 de agosto de 2009

velório


Veloso - Ruído Azul

Os pés colavam-se ao chão e eu senti que deveria responder. Prontamente comecei a responder. Mas assim que comecei algo me fez desistir. Uma força contrária. Um cepticismo de pele. Uma falta de fé. Para quê? Para quê? Valerá a pena? É importante para ti? É importante para quem? São as tuas mazelas. Deixa-o. São tuas. Deixa-o. Não existe possibilidade de reencontro. Deita-te e chora. Ou deita-te e lê. Senta-te e escreve. Faz o almoço. Ou o jantar. Folheia um livro. Chama alguém para te fazer companhia. Deita-te no chão e sente a madeira. Ou na sanita e arranja as unhas. Para quê? Para quê? Deixa. Bebe água. Bebe vinho. Bebe. Embriaga os outros e sente inveja. Ri com a bebedeira dos outros. Que alguém possa...

Uma vida de controle. Aparente. Uma vida. A minha vida de controle aparente. A minha calma. Aparente. A minha assexualidade. Aparente. O meu lesbianismo. Aparente. O meu profissionalismo. Aparente. A minha eficiência. Aparente. A minha cultura. Aparente. A minha ignorância. Aparente. Aparente. Aparente. Quero eu tudo isto que me colocaram à porta de entrada? Os correios despejaram-me aqui um monte de coisas. Disseram que foram enviadas por ti. E por ti. Por ele. E por ela. Quero eu? Mandei eu vir? Comprei? Demonstrei desejo? Quero? Não sei. Mas tudo, não. Vou devolver. Não pago. Não pagarei. A minha mãe ensinou-me a dobrar papel. A fazer origami. Ela chamava-lhe de dobragens. Cisnes. Gatos. Cães. Patos. Andorinhas. Nossas Senhoras. Esqueci. Esqueci como se dobra o papel. Repreendi a usá-lo. Mas ele prende-se-me nas mãos e não vinca. Enfola. Como o barro se cansava de mim. Eu que não sabia o que lhe fazer. Fumando cigarros à porta. À chuva. Nas escadas. Nesse tempo eu era eu e eu. Como se tivesse as costelas coladas ao céu da boca. Estranho. O cabelo caía-me pela cara e protegia-me do olhar de quem subia. Estranho. Ele só me deu a mão. No dia. naquele dia.

Pergunto-me se deixei algo por dizer. E se sim a quem? A quem? Eu que tento dizer o mais importante primeiro. Deixei? Quantas coisas deixei de dizer? Quantas ocultei? E porquê? Aqui. Agora. Digo. Afirmo. As minhas mãos... As minhas mãos estão tensas e quentes. Mastigam-me o corpo. Fazem-me ter desejo de as arrancar. De sentir estas mãos como não minhas. Longe do meu corpo. Longe dos meus braços. Longe das carícias. Longe dos afagos. Chegar. Descalçar. Despir. Cuecas e soutien. E mãos. Mãos no despeja bolsos. Mãos na mesa da entrada. Mãos sobre as facturas e recibos da entrada. Mãos junto aos sapatos na entrada. Coloco umas outras. Para que possa cozinhar. Para que possa apanhar roupa. Masturbar. Tocar. Coloco outras mãos. Coloco as tuas. Coloco as tuas mãos.

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