segunda-feira, 24 de agosto de 2009

foz


Donna Murty Todd


Sim, lembro. Era eu quem metia sempre as mãos no vomitado. Quem ficava na casa-de-banho a limpar os dejectos. A desentupir o lavatório. Quem revolvia o vomitado na água parada do lavatório. Era um nojo. No início. Coragem. Racionalizar. Podia até imaginar que eram pétalas de rosa boiando em perfume. Não sei. Mas sim era eu. Eu que nunca vomitava. Perdia os sentidos. Ou ia. Ia por aí. Dormir aqui ou ali. Partir para ver o mundo. Ver cidades. Conhecer gente. Metia as mãos na sangria. Revolvia a fruta. Despedaçava entre os dedos os gomos da laranja. No final restava-me o vomitado. E os beirais das portas da rua. Os nossos rabos já sabiam escorregar sozinhos. Uma rua com bêbados encostados a portas. A paredes. Que procurávamos nós? Não procurar. Adormecer?

Mascaro-me de velha ou de espanhola? Tenho os sapatos. Posso arranjar a cabeleira. Mascaro-me de bivalve. Abro-me e fecho-me. Abro-me e fecho-me. Apertadinha... O Natal está quase a terminar. O da campanha, pois do outro já só resta memória. A minha mãe costuma dizer Para a frente, filha. Para a frente. É mãe, para a frente. Para a frente. Afinal eu já tive dias de correr em corredores de mármore. E de fumar às escondidas. Sabes não sinto ciúmes. Quero-lhe bem. Nunca fui a última. E alguém é? O meu maior sonho foi o de ter à disposição todos os chocolates, rebuçados e pastilhas do mundo. Acordava e no mundo todos tinham desaparecido. Puf. Evaporavam-se. Restava eu e as minhas irmãs. Corríamos para o café da Paiva. Para a vitrina dos chocolates do café do Paiva. E ali ficavamos. Até à eternidade. Um nunca acabar de sonho e chocolates. Porque quando somos crianças não necessitamos de futuro, nem finais. A desembrulhar um a um. A abrir um a um. A comer todos. Todos os que pudesse. E quanto eu podia! O sonho nunca teve fim. Por vezes a minha mãe não se evaporava. Por culpa. Por culpa em fazê-la desaparecer. Não porque quisesse comer pescada cozida. A São já está grande e pode fritar batatas. Esses são de mel e eu não gosto. Prefiro estes de morango. E aqueles além da Regina.

- Oh mana... mana...
- Sim? Que queres?
- Abre-me a gaveta.
- Tabém...
- Bigado.


E lembro-me. Ainda me lembro. Não sei porque lembro, mas lembro. Do primeiro dia em que consegui sozinha. Sem ajuda. Sem pedir. Sem gritar. Sem chamar. Do primeiro dia em que ainda não chegando aos puxadores, com os dedos em garra, crispados na madeira escura, abrir a última das gavetas da cómoda. A minha gaveta. A junto ao chão. A mais baixa. E na parede um quadro a óleo de um palhaço. Nunca gostei dele. Algo falso... Sorria mas o olhar...

A minha mãe fazia bolas de berlim sem creme para levarmos para a praia. Há quanto tempo não como uma bola de berlim? Sim... Lamber os dedos no fim.

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