terça-feira, 4 de agosto de 2009

Nação


Ruela Pinho

Vamos ouvi-la. Os dois. Nós os dois. Ouvi-la para que te explique. Para que sintas. O grande que sou. E o como me transformo em areia. Em pó. Ouvir. Ouvir com carícias. Ouvi-la. É de uma beleza atroz. De um horror em mim. Em ti. De um silêncio aterrador. Completo. Um silêncio de órgãos. De corpos. Como se todos deixassem de respirar. Se contivessem. Parassem. Imobilizassem os movimentos espontâneos. Os que não podemos controlar. Uma carícia. Uma carícia do tamanho do mundo. Tão grande... capaz de albergar-nos a todos. Eu. Tu. Eles. O mundo. E albergando, mantemo-nos únicos. Eu única. Tu único. Todos únicos. Ouve. Ouve. Desfaço-me perante esta melodia.

Indigno-me. Por pouco tempo. Sempre por pouco tempo. Nada em mim dura muito. Apenas a essência. A que não tem consistência. Nem rigidez. Nem cheiro. Nem nada. É tudo. É um aplauso. Um palco comigo em cima. Em silêncio. Rindo. Dançando. Tapada com um lençol. Que não uso.

Olho nela. Procuro nela uma humanidade. Para que possa continuar a olhá-la. Para que possa conseguir abrir-lhe a porta quando passar. Para que possa sorrir-lhe quando falar. Olho nela. E sinto-a. Sinto-a nada. Na força de nada ser. Na força de tudo ser. Incipiente. Olho nela. Já vomitei sobre ela. E sobre mim. Sobre os valores de merda dela. Sobre os quereres de merda dela. Ela que se acha moderna. E rebelde. Somos todos tão rebeldes. Uns rebeldes caprichosos de merda. Mas chamam rebeldia ao tomar drogas. Ao saltar em concertos de terra batida. Que rebeldes que somos! Ao apontar a que se deita com o homem casado. Que rebeldes que somos nesta mesquinhez de conservadorismo mental. Mas somos rebeldes. Afinal temos filhos pequeninos. Criamos filhos pequeninos e ouvimos Sex Pistols. Somos uns rebeldes de merda. Uma merda é o que somos.

Anoitece. Em frente uma janela. Jantarei os restos do almoço. O almoço foram restos do jantar de ontem. Enganei-me. Amanhece. Amanhece comigo dentro. Numa bolha. Numa bola de sabão. Pum! Rebenta puta. Janto agora ou mais à noite?

Tenho sono. Tenho sono. E porque não me deito? Porque sonho. E sonho. E não quero. Sonhar é aflitivo. É não ser eu e nada ser tudo. E... e tudo ser nada. Que vai. Vem. Desaparece. E volta. E não há controlo. Nem há emoções minhas. É tudo de fora. De fora para dentro. É uma bomba que transporto na mão. Que deixo esquecida ali. Mas sem querer e porque não há querer, volto a agarrar.

Ele recuperou. Recuperou tão bem que morreu. Rimos. E caso queiram que paguemos o funeral que o desenterrem. Desenterrem e fiquem com os ossos. E o caixão para fazer palitos. Que o levem. E o deitem ao mar. E rimos. Rimos porque só assim. Só assim se justifica a morte. Com gargalhadas. Com sarcasmo e ironia. Só assim. E a exigência do café no velório. Que café? De que marca? Não. Nespresso não. É doce. É italiano. Queremos português amargo. Forte. Áspero. E se deixar borra eu gosto. Se me queimar a língua eu gosto. Se me provocar lágrimas eu gosto. É como a beleza. Se simétrica nada a dizer nem descobrir. Por isso gosto de marinheiros. Os marinheiros de Jean Genet. Secos e ásperos. Rugosos de dedos grossos. De olhares enublados de sal e de horizontes.Os idealistas de Hemingway. De sonhos rosáceos marinhos e fados nascidos em berços de rede. Os meus. Os que vesti com roupas de mulher. Os que fodi em camas sem lençois. Os que me puseram um olho negro.Personagens míticas e místicas. Para mim. Porque aos mais rudes mais amor lhes é permitido. Porque os que mais vagueiam arriscam no agora. Porque não há nada a perder quando o cais de desembarque de hoje será o de embarque de amanhã. Os meus marinheiros. Os meus estivadores. Os meus operários. Por vezes, somente por vezes, mas por vezes, deitada nua em pensões baratas sinto-me... marxista.

Existe um local para onde sempre volto. Sempre que quero. Sempre que preciso. Sempre que não consigo mais ajoelhar-me. Esperar. Aguardar por uma mão em mim. É secreto. Um canavial. Uma praia. Um monte. Estrelas. Céu a perder. Num corpo. O meu. Só meu. Existe um local. Dentro de mim.

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