quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Branca


Keiko Iwamuro - Gold Fish Cow and Egg

Molhei o cabelo. Com gel puxei-o para trás. Para que me vejas o olhar. Um olhar de testa e queixo. De nudez facial. De risco grosso preto nos olhos. De olheiras cinzas. Vesti-me como me disseste. Como me pediste. Com murmúrios. Como pedes. Sem jeitos nem considerações. Com esse teu egoísmo de entranhas em risos estridentes. Não existia esperança. E a vontade era de não seguir. De me deixar estar sentada. De te olhar e desprezar. De te gozar. Porque podes ser desprezível. E estranhamente tentador. Visceralmente ser pensante de olhar escuro e profundo. Em mim. Agora voas. Em direcção oposta a mim e eu ainda sinto o teu cheiro e a tua saliva. O vómito provocado e a urina no sofá são as lembranças que me deixaste. Porque sem que o saibas é a tua intimidade que procuras em mim. Porque existe magia em nos degradarmos. És batida forte. E de estar que me transcende. Em comum temos este sermos nada em querermos sentir tudo. Ressaco pelos buracos que ficaram por encher. E da boca saltam ardores de estômago. O meu desejo sobe-me via intestinos. Um dia cago sobre ti. Para que me devores. Não chorarás mais a perca da mãe. Serás impala na tua África. Espreitas-me e eu enlouqueço-te. Em esticões de pescoço. Abanares de cabeça. É. É. Posso ser irreal. Ou surreal se fechares os olhos e os semi-abrires. Viro verde e roxo. Pinto-me de cores e cheiros. Abro-me e estico-me. Rebento em convulsões de saliva, urina, vómitos e fezes. Dou-te novas paletas. Esventra-te. Sei que não acreditas. Nem mesmo naquele momento sou real. Dispo-me do papel e mantenho os sapatos que me elevam acima de ti. Onde estás? Vieste tarde. Culpo-te porque vieste tarde e agora estamos sem tempo. Limpei a pele já sem ti. Lavei os pecados que não sinto. O silêncio era esmagador. As tarefas automaticamente engolidas em névoa. Que silêncio aterrador. Intenso. Um buraco. Em mim. Foda-se. Digo foda-se. Foda-se.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Bomba


Mário João Alves Lino

Olha querida, olha lá para fora. O sol nasce sobre todo o nosso horizonte. Nasce para ti. Nasce porque tem de te iluminar. A ti a esses teus caracóis loiros. Olha querida, olha. Olha e devora mais este bife a nadar em gordura. Olha e come. Quero-te monstro. Quero-te enorme. Quero-te imóvel. Sem conseguir andar. Sem estrutura para aguentar o teu peso. Dependente de mim. Como querida, come. Come o que te dou. Tudo o que te dou. O meu afecto em forma de batatas fritas. O meu amor em pudins de leite condensado. O meu carinho em bacon estorricado. Come meu amor. Come. Quero-te grande. Grande como minha mãe. Grande como a deusa mãe dos homens. Grande. De seios imensos onde me perco. Que tento agarrar e se escapam entre os dedos. De mamilos ovo estrelado. De refegos imensos. Descai sobre essa cama. Posiciona-te para os próximos anos em que tratarei de ti. Só precisarás de mim. A mim que te alimenta. E te limpa. E te consola. E te ama. Mas come querida. Come. De forma a que as tuas pernas não dobrem. Os teus braços se afastem do corpo e eu me perca nesse amontoado de carne e banha. Porque te adoro. Porque te quero minha e somente minha. Fotografo-te querida. Memorizo para que possamos ver e rever. O último dia em que andaste. O primeiro dia em que te limpei o rabo. Come minha querida, come. Quero-te dependente. Quero-te minha. A minha montanha. Onde me perco. Onde me perder. Tratarei de ti. Não temas. Amo-te. Desejo-te. Um desejo insaciável de grandeza. De pregas. Pregas que toco e revolvo. Que endireito e lavo. Afastar com as duas mãos uma nádega para que te limpe. Quero ter de procurar em ti o buraco da cona. Ter que me afundar nesse teu corpo. E revolver. Nadar. Em busca do paraíso perdido. Em busca das origens. De onde saí. Por onde entrei um dia em força. Por onde quero entrar para me esconder. És minha. Serás cada vez mais minha. Caloricamente amo-te. Amo-te. Tanto, que não precisarás de nada. Somente de mim. O filho pai. Na saúde e na doença. Na cama. Nessa cama de onde não irás mais levantar. Porque não necessitas. Porque o mundo se deita a teu lado. Come, meu amor. Come. Engole o meu mundo. E o teu. Consome-me. Consumo-te. Come, minha querida. Come. Devora. Mulher gigante. A minha. Mulher mãe. Minha mãe terra.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

botas da tropa


Albano Ruela - Target

Aldeã. Podes chamar-me de aldeã. Ainda que calce estas botas pretas. Ainda que vista estas calças. E esta t-shirt. Podes chamar-me de aldeã. O meu cabelo ainda tem os jeitos do lenço que tirei da cabeça. Ontem. E a minha pele ainda cheira a ervas e trigo. Da minha boca ainda vem o cheiro pálido e agreste do leite acabado de ordenhar. Os meus braços mostram as marcas do sol nos pomares. E as sardas do peito tem a cor do vento nas videiras. Aldeã. Chama-me de aldeã. Sente a aldeã em mim. A que não tem medo de insectos, bichos rastejantes, aranhas e ratos. A que come fruta com casca e ouve rock progressivo. Industrial em cearas de milho. E a ford azul bebé em curvas de campos em pousio era uma vertigem. O fumo. O Pedro cigano que me dava sacos de erva gargalhada. E os charutos cubanos fumados com palitos debaixo de figueiras roxas. Sente os caracóis que rastejam na minha cabeça. E o arranhar das patas dos escaravelhos a descer pelas pernas. Tenho carraças atrás dos joelhos e dou-lhes de comer. Nos bailes deixo-me levar pela música e como amêijoas. Nos pés as botas. Nas pernas nuas um tecido esvoaçante chamado de saia. O amor pelos vestidos. E pelo vento. Nas ancas largas de quem podia parir. No corpo de mãe. Ogiva em infinito. Aprendi a lançar o pião e a magoar a cabeça dos dedos com os abafadores. Sim. Sou esta. Sou também esta. Chama-me de aldeã. A dos beijos nos pombais abandonados. E dos dias da mãe com flores roubadas num jardim alheio. Da lama nas botas e das amoras nos bolsos. Suja. Porca. Molhada. A trovoada no corpo. A tempestade que despenteia. Uma ilusão estas estantes. Eu sou aldeã. Gosto andar descalça. De calejar os calcanhares na gravilha e nas pedras. De ter o cheiro do jasmim nos dedos. Do queijo seco ao sol. E do barulho da passarada interrompido pelas motorizadas. Meto ervas na boca. E chupo. Sugo. Contraio os músculos contra o tronco de árvore abatida. Salto desajeitadamente a vedação do vizinho e oiço os tiros. Roubo morangos. E couves por divertimento. Não te iludas com o ipod. O meu sotaque não engana. Sou aldeã. Li fotonovelas italianas com legendas em brasileiro. E banda desenhada pornográfica encostada à adega onde me deito. Os meus dentes escurecem com o vinho. E do cimo do monte grito ao eco. Sou Pã sem flauta. Sou aldeã. Chama-me de aldeã.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

bolotas alentejanas


Frantisek Dritikol - Dancers


É uma nudez. Uma nudez. Uma insatisfação à qual sorrio. Não existe cura mas trato-me. As unhas crescem-me. Não as como. Estou em dieta de unhas. Estou em dieta de homens. Estou em dieta. Mentira. Há um silêncio lá fora que entra pela janela. Apodera-se de mim. Eu que danço aqui sozinha. Uma valsa. Uma valsa de silêncio em mim. Vivo esperando um dia. Ansiando um dia. De partida. De ida. De ir. E ir. E estar lá. Lá onde quero estar. Na areia entre os dedos do pés. No sol em mim. No meu corpo largo. Enorme. O meu. O que me pede. Pede-me calor. Sol. Pede para sentir dedos diferentes. Dedos em forma de raios de luz.

Amo-te apenas porque não te pude amar.

Visto-me de preto. Mas na corda tenho o vestido cinzento. E o vermelho. E o azul. Prontos. Prontos. Para entrarem pela cabeça e me cobrirem o corpo. E rio-me. Rio-me de mim. Sou uma desculpa esfarrapada. E faço de ti uma outra. No querer. No querer sentir faço de ti um deus na terra. Tu que és ordinário. Eu que sou vulgar. Mas assim perco-me. É mais fácil. Saber-me perdida é procurar. É tentar encontrar. A mim. A ti que já deixei no caminho. As canas são altas. E eu sou pequena. Sempre fui. Sou vigarista. Vendi-te um sonho e comprei gato por lebre.

O meu filho. Lírico. Da boca palavras bonitas. Daquelas que só leio quando abro o dicionário. Daquelas que oiço de dez em dez anos. Lírico. A ervilha dos monstros negros e das fadas loiras. Das relações caladas. E mal resolvidas. Dos ressentimentos porque são melhores que nada. Dos silêncios porque temos de alimentar as emoções em nós. Dedilha. O meu filho dedilha em mim. E os olhos são profundos. De homem. Se me afasto vira o menino que eu pari. Que saiu de entre pernas. De barba. Já com barba. Ruiva. Brincamos. Sim. Empresto-te as minhas pernas. E a boca. Brinca. Brinca. E chama a ti todo este brinquedo grande. Como se sempre tivesse sido teu. Estranho a virilidade. A do riso. A do absurdo. A mim chamaram-me nomes. Uma gargalhada.

Existem duas almofadas pretas que têm de mudar de posição. Porque uma loira de cabelo escorrido, oleoso, nauseabundo, assim quer. Que seja. Que seja como dizes loira com cabeça de frigideira.

Há sangue entre as minhas pernas. Desenho na face pinturas. Com sangue. Que seca. E parte. E estilhaça. E na música procuro esventrar a carne. Alface, delícias do mar, queijo fresco. Queres almoçar comigo hoje?

sábado, 5 de setembro de 2009

cristina


Karim Ramzi

Recomecemos... parece que um gato miou aqui ao lado. E estranho é que tenho ouvido guinchos e sons de estaladas. Aqui na rua. Mas a tua voz põe-me assim. Com vontade de pele na pele. E de dedilhar nesses teus mamilos. Pode ser perigoso mas temos as máscaras de gás. Falei-te na cozinheira loira. Na do cu de preta. A porca. Porca porque se recusava a tomar banho. E no sucesso que ela tinha na rua. Todos os homens se voltavam. Para lhe olhar no cu. Nas nádegas firmes dentro das calças de ganga. Vejo-a. Cantarolando as canções da Romana. Eu? Eu lavava os frascos e guardava-os vazios. Fiz uma colecção. Estranha. Embalagens de vidro. De plástico. Sem etiquetas. De perfume. De patés. De cremes. De amaciadores. Ainda hoje me pergunto porque guardava eu tanto frasco... Como as matrículas. Essa contei ao bicho. E num outro tempo a casa-de-banho era branca imaculada. Um dia perdi-me na Buraca. No bairro clandestino de tijolos à vista. No escuro. No escuro de portadas sem portas. No entrar e sair dali. Entrámos num bar. Escuro. Tudo era escuro. Numa Jamaica perdida nos subúrbios. Nas rastas e dentes brancos. Passei a noite a dançar com um homem de calças brancas. A sentir-lhe o alto entre as pernas. Grande. Imagino que grosso. Como me esfreguei... E arfei. A cozinheira era futuro. Um branco de cabelo encrespado. De casaco branco a condizer com as calças. E camisa aberta. Lembras? Diz-me qual a diferença entre dating e hang on. Dizes? Eu gosto mais da palavra hang on. Dá a sensação de cabide. De algo pendurado. Que podemos despir. Descolar. Mandar fora. Um cabide para pendurar. Enquanto durar o dating. Nunca gostei de datas. E a mania dos homens quererem estar com data marcada. Eu que sou de apetites. Marcar o quê? Onde? Como? Hoje esqueci-me de beber água. Bebo vinho. Bebo. Bebo. Bebo todo o vinho do mundo. E não me chega. Estão a plantar mais videiras para me fazer mais vinho. Como o dinheiro que está a ser impresso. E não me chega. Vamos pensar positivo. Chega e sobra. Sobra sempre. Tira-me essa música. Quantas vezes já a ouviste? Que chata o raio da mulher. O que pensarão os vizinhos? Ui. Os vizinhos. Não quero imaginar. Vêem-me a sair para a missa todos os dias. Ouvem-me a rezar em casa. As minhas preces são sempre escutadas. Tenho dificuldade em sussurrar. Mas não grito. Acho... não me oiço. Estou compenetrada. Gostava de ter um smoking. E uma gravata. Fascinam-me vestimentas dessas. Depois penteava o cabelo com brilhantina e punha um cigarro nos lábios pintados de vermelhão. Havia de ficar bonita. A Piggy armada em Cocas. Não tens sono? Não. Que porra. Sim. Apetecia-te um corpo. A mim apetecia-me sol na venta. Ele é perigoso. Sim. Mas está longe. Desliguei. Estás contente? Há mulheres que engordam do ar que respiram. E dos bolos que comem ao lanche. Inaceitável. Vamos encher este espaço branco de letras. E depois podemos dormir. Ele disse que telefonava. Sim. Também as outras duas centenas. Ri-te. Sim. Que grande vaca tu me saíste. As vacas são porreiras. E dão leite. Desintoxica. Permite-nos continuar a acender cigarros. Um concurso para ver quem consegue fumar mais cigarros em uma hora. Ganhavas. Talvez. O Mário seria adversário. E o tipo das Finanças. Eu tenho uma imagem romântica do fumo. Passar a ferro a fumar. Deixar cair a cinza na roupa e passar o ferro por cima. Planchar. Plancha-me. Expressão deliciosa. Plancha-me contra a parede. Plancha-me à parede. Com força. Voltou a miar. Ouves? São os homens do lixo. Larga as unhas. Gostava de reler a história do macaco e da viola. Vai dormir. Vou. Vou dormir. Vens comigo? Só se me beijares. E me abraçares... Desculpa. Esqueci-me que não tens braços.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Onanismo


Willian Ropp - Silence

Uma caminhada. Um processo. Lento. Devagar. Molengo. Sem vontade. A medo. Angustiante. Por vezes. Às vezes. Nas vezes em que sentando-me na ponta da cadeira olho em volta e pondero o que fazer. Onde ir. Ao que me dedicar. Eu, a dos projectos. E dos objectivos. E dos quereres. E das vontades. E dos desejos. E do ir. E do vai. Férias. Vou tirar férias. De mim. De tudo o que me rodeia. Essencialmente de uma parte de mim.

A irritabilidade. A incompreensão. A intolerância. Em mim. Agora. Nas bainhas por fazer. Nos cadernos por enviar. Nos desperdícios. Nos meus desperdícios. De carne. De suor. Não. Não há lágrimas. Não há lágrimas que resistam a esta violência. A este empastado de alienação. A esta intensidade e medo de morrer. De não sentir. De não ser alguém. De ser o que sou.

O telefone tocou. Não atendi. Não quis atender. Duas vezes. Não atendi. Os telefones já não trazem toques banais. Convencionais. Toques de telefone. Trazem tudo menos toques de telefone. Vou fazendo. Fiz muito. Ontem. Antes de ontem não. Foi cansaço. Um sono. Uma vontade de matar o corpo. Ontem. Hoje não. Uma decisão. Sem coragem.

É mentira. É tudo mentira. Somos sempre sós. Momentaneamente partilhamos. Mas o fundo descobre-se. E temos novamente de nadar. De voltar à superfície. Ou não. Matamo-nos. O buço cresce-me à velocidade das unhas. O verniz estala-me. Os olhos murcham. A barriga incha. Vou esventrar-me em sangue. Sentir os pelos encravados. Cheirar o meu suor. Rir-me das minhas fezes cor de terra argilosa. A minha intimidade é além. Além deste corpo. Que já dei. Entreguei. Violentei. Vendi. Enganei. Saciei. Comi. Devorei. Torturei. Anulei. Em mim. Eu. Em mim.

Alimento com sensações. Só com estas e através destas voltei. Só assim. O equilíbrio nunca me impulsionou a criar. A escrever sobre paredes. E ervas daninhas. Começo a gostar de mim. Não morrerei sem tentar. Eu urino na frente de todos. Um acto. Comer. Dormir. Roncar. Urinar. Ronco. Ronco. Acordo. Tenho tudo aquilo que se esconde. Cuecas sujas ao final do dia. Gotas de sangue. Pelos. Baba na almofada. Borbulhas e pontos negros. Cu sujo. Cheiros intensos. Suor. Escarros verdes. Unhas encravadas. Buço. Impurezas. Herpes labial. Tropeço no caminho. Em preguiça. Em tristeza. Em frustração. Em não ser especial. Apenas mais uma que aqui anda. Mais uma que aqui tenta ser alguém.

Eu podia dar a mão a alguém. Mas sou arrogante. Demasiado arrogante. Na impossibilidade tento bastar-me. E às vezes sou pedra. E cega. Às vezes sou um umbigo. Redondo. Como um poço. O poço onde estou. O poço que um dia em repetição cavei. E é nas palavras, sempre nas palavras que sublimo tudo o que é primordial. A angústia e a culpa. Sou filha de uma procura que não acaba. Que não tem fim. Caverna. Túnel.

Este fim-de-semana vamos fazer um piquenique. Tenho saudades tuas. Fernando.