quinta-feira, 10 de setembro de 2009

botas da tropa


Albano Ruela - Target

Aldeã. Podes chamar-me de aldeã. Ainda que calce estas botas pretas. Ainda que vista estas calças. E esta t-shirt. Podes chamar-me de aldeã. O meu cabelo ainda tem os jeitos do lenço que tirei da cabeça. Ontem. E a minha pele ainda cheira a ervas e trigo. Da minha boca ainda vem o cheiro pálido e agreste do leite acabado de ordenhar. Os meus braços mostram as marcas do sol nos pomares. E as sardas do peito tem a cor do vento nas videiras. Aldeã. Chama-me de aldeã. Sente a aldeã em mim. A que não tem medo de insectos, bichos rastejantes, aranhas e ratos. A que come fruta com casca e ouve rock progressivo. Industrial em cearas de milho. E a ford azul bebé em curvas de campos em pousio era uma vertigem. O fumo. O Pedro cigano que me dava sacos de erva gargalhada. E os charutos cubanos fumados com palitos debaixo de figueiras roxas. Sente os caracóis que rastejam na minha cabeça. E o arranhar das patas dos escaravelhos a descer pelas pernas. Tenho carraças atrás dos joelhos e dou-lhes de comer. Nos bailes deixo-me levar pela música e como amêijoas. Nos pés as botas. Nas pernas nuas um tecido esvoaçante chamado de saia. O amor pelos vestidos. E pelo vento. Nas ancas largas de quem podia parir. No corpo de mãe. Ogiva em infinito. Aprendi a lançar o pião e a magoar a cabeça dos dedos com os abafadores. Sim. Sou esta. Sou também esta. Chama-me de aldeã. A dos beijos nos pombais abandonados. E dos dias da mãe com flores roubadas num jardim alheio. Da lama nas botas e das amoras nos bolsos. Suja. Porca. Molhada. A trovoada no corpo. A tempestade que despenteia. Uma ilusão estas estantes. Eu sou aldeã. Gosto andar descalça. De calejar os calcanhares na gravilha e nas pedras. De ter o cheiro do jasmim nos dedos. Do queijo seco ao sol. E do barulho da passarada interrompido pelas motorizadas. Meto ervas na boca. E chupo. Sugo. Contraio os músculos contra o tronco de árvore abatida. Salto desajeitadamente a vedação do vizinho e oiço os tiros. Roubo morangos. E couves por divertimento. Não te iludas com o ipod. O meu sotaque não engana. Sou aldeã. Li fotonovelas italianas com legendas em brasileiro. E banda desenhada pornográfica encostada à adega onde me deito. Os meus dentes escurecem com o vinho. E do cimo do monte grito ao eco. Sou Pã sem flauta. Sou aldeã. Chama-me de aldeã.

7 comentários:

  1. Quanto estás feliz o teu sorriso tem o tamanho do sol alentejano, num suado dia de Verão :) I rest my case...

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  2. Convenceste-me. Caraças, que a moçoila é mesmo da aldeia. :-)

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  3. aldeã, aldeã. por momentos pensei que iria repetir-se ritmicamente ao longo do texto como uma mantra.

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  4. Se repetirmos muitas vezes uma mentira. Ela torna-se aldeã.

    Ogiva em infito. És um bomba.

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  5. A aldeã foi para férias.
    Volta depressa, tenho saudades de te ler. :)

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  6. Então, loja fechada, trancas na porta... Essas férias nunca mais acabam?

    ;)

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