domingo, 14 de março de 2010

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 Harukawa

Há um corpo que se quer estendido. E uma manta que amolga um outro corpo que não existe. Por agora. Para sempre. 

Olha-o e sente todo o amor que é possível a consumi-la. De tão forte afasta. De tão intenso isola. Como se perante sentimentos de partilha não conseguíssemos ser mais que seres solitários. Como se o sentimento fosse além do ser. Da pessoa. Irracional. Imoral. Independente. Amo-te porque em mim existe este sentimento de amor. Amo-te porque não posso contrariar. Nem quero. Amo-te apesar de ti. Amo-te não por seres quem és. Ou não apenas por isso. Amo-te porque... porque tinha de te amar.

A mulher da frente hoje não aparece. Sentada.
Estou branca. A minha pele transparece o Inverno que não acaba. Os dias de chuva intermináveis. O cansaço tolda-me os sovacos peludos. Lavo-me na imensidão da casa que sinto nossa. Minha com objectos teus. Tua com objectos meus. Nossa.

Há um livro sobre Fadas e Elfos. Por ler. Junto à porta. Na mesa de três pernas coxas. Há um sem número de livros e recordo-me do último jantar que me ofereceste. E da tua raiva em amares-me. Em queres-me. Em seres bem sucedido. Amo-te pela passividade que perturbo com prazer. Por vezes sinto uma imagem em sombras a nosso lado. Sou eu. Ocultando-me. Revelando-me. Sou eu.

Homens-gato. Homens-cão. A fidelidade é uma mentira. Precisam-se putas. Sem medo.

Lavagante. Lavagas-me o corpo e magoas-me nestas manhãs. Eu que um dia te darei uma chibata para que me sangres.

O cão está ao lado da tua cadeira. A que já não vejo como minha. Por cedência. Porque a mim importa-me o sentires-te bem. E é nas minhas unhas que revejo o passado. O que contei. O que calei. É das minhas unhas que retiro restos de ti. Do teu cabelo. Do teu suor. Do teu ânus. São elas que me falam nas manhãs em que é doloroso sair de casa. Em que eu gostaria de ser vaca para pastar em prados altos e verdes. Ou gato para me aninhar nas tuas calças sujas.

Levanto-me
Vou.

terça-feira, 2 de março de 2010

Beringelas recheadas com o que nos apetecer


Diane Arbus

Senta-se no beiral da porta aguardando a moeda. Senta-se no beiral da porta olhando-me de baixo. A mim e aos que me seguem. A mim e aos que me antecedem. Senta-se.

Só hoje reparei como tinha o cabelo comprido. Amarrado atrás do pescoço escorria pelas costas e tocava na cintura. Fino o cabelo. Fina a cintura. Só hoje reparei. Em quantas coisas só hoje reparei? Em quantas coisas hoje não reparei? E ontem?

Abomino donas de casa e fadas do lar. Abomino jantares e namorados. Abomino maridos e convenções.

Leio.

Sentada nuns degraus. Na parte turística da cidade. Sentada.
Oiço.

- Eu não vou deixar de ser rica - dizia com o cabelo apanhado no topo da cabeça enquanto a franja lhe caía sobre os olhos. 
- Nunca. Nunca vais deixar de ser rica. A meus olhos - disse-lhe com o cabelo despenteado sobre uma cabeça que não sentia minha.

Supermercado.
No Sábado fodemos com o Bruno. Lembras?
Não. Eu esqueço o que me traz... prazer?

- As latas de atum?
- Sairam a voar pela janela que estava aberta.
- Lentamente.
- Aos teus olhos.

Vou deixar-te sentar neste lugar. As facas estão afiadas.