domingo, 15 de novembro de 2009

Lastro


Otto Dix



Tem as pernas nuas. O tronco nu. Na mão um cigarro arde. Está sentada numa sanita. Branca. Simples. Numa casa-de-banho cheia de objectos e frascos. De tecto às riscas azuis. A lembrar uma tenda de circo.Ou de praia. Fuma. Na sua frente a cortina do banho. Que mexe de vez em quando. Como se sentisse que de alguma forma alguém se escondesse por detrás da mesma. Fuma. Aparentemente está sozinha mas de repente solta uma gargalhada. Irónica? Cínica? Não se entende. Parece infantil. Meio ingénua. Mas ficamos na dúvida. Talvez não seja assim tão simples. Movimenta-se. Mexe o rabo na sanita e adapta-se. Olha na barriga. Na borbulha que lhe cresceu de noite. Na barriga. Com o dedo de unha partida espreme-a. Não rebenta. Desiste. Olha entre as pernas. Nos pés. No papo entre as pernas. Sorri. Sorri para a cortina branca da banheira. Eleva uma mão. Está sozinha?
- Não é uma questão de afecto.
Pára. Debruça-se sobre o tronco.
Olha nos pés. Arranjados. Minimamente tratados. Nus. Despidos. De verniz do Verão. De feminilidade produzida.
- És tu.
Olha no espelho. Onde só verá... a cortina branca da banheira.
- Eu não sei. Não sei o que fazer... a minha vida? 
Onde deveriam existir certezas. Há esta pasta de dúvida e angústia colada à pele. Onde não procura. Procura? Ser eficiente. Produtiva. Independente. Neste mundo que a cala. E silencia.
- Eu não sei...
Repete. Repete-se. O dedo da unha quebrada raspa a pele da perna esquerda.
Olha nos pés. O tapete branco muda de cor. De vermelho a amarelo. Atira o cigarro para a sanita. Levanta-se. Vira-se. Perante o manípulo estragado do autoclismo baixa o tampo da sanita. Desiste. No andar algo estranho. Como quem reaprende. Como bebé.
O seu corpo está estendido na cozinha. O corpo que há momentos fumava cigarros na cozinha.
Olha no seu corpo no chão. Olha no seu corpo de pé. Ambos estendidos.
No ar. Ambos seus.
Onde ir?

1 comentário:

  1. Não sei se a escrita cura
    mas alivia...
    Não sei se a lágrima sara
    Ainda cativa na tua mão
    insegura...

    ResponderEliminar