sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Casablanca


Albano Ruela - Ente

O enterrador estava pronto. Tinha escolhido um local em que sabia que dificilmente seria incomodada. A maioria dos que utilizavam o processo solitário fazia-o em locais bonitos. Praias, montes verdejantes, pequenos paraísos de cor e luz. Não uma fábrica velha junto a uma pedreira abandonada onde imperavam os cinzas e a rocha nua espreitava em tons escuros num monte dilacerado a picaretas. Não tomaria o comprimido. Tinha-se decidido a sentir. Sempre a sentir. O solitário não lhe seria indolor mas sentiria algo. E o último pensamento seria dele. A ele dirigido. Quando a terra batesse sobre ela fortemente. Quando o seu corpo recebesse o impacto daqueles quilos de terra seria nele que pensaria. Nele que não a amara. Nele que não a quisera. Nem a ela, nem ao seu amor. Sufocaria lentamente? Não sabia. Não procurara informar-se. Chamar-lhe-iam de doida caso explicasse o que pretendia fazer. Não existia relatos de quem não tivesse tomado o comprimido. Não existiriam relatos de nada. Quem experimentava o enterrador não ficava para relatar. Daí não se preocupar em saber como se programava o enterrador. Seria manualmente que o faria. Bastava-lhe puxar a alavanca com o cordel que trouxera para o propósito. Cavar um buraco onde deitar o corpo. Colocar a terra do buraco sobre a plataforma do enterrador. Deitar-se no buraco. Concentrar-se no céu escuro. Puxar o cordel. E cairia a noite. Para sempre. Sempre. Questionava-se. Existiria espaço à tosse? A convulsões? Ser enterrada viva. Sentir-se a morrer. A sufocar. Espaço a gritos? A arrependimento? Desde que os pais lhe tinham morrido não existia motivo para se deixar ficar. Os entusiasmos não morriam. Apenas tinham deixado de se fazer sentir. Era um zombie. E na cabeça apenas uma morada. A morada dele. Dele. Seguira-o. Visualizara-o de longe. Sonhara em que ele voltaria e lhe diria que a amava. Que a queria. Que não conseguia viver mais sem ela. Que a desejava como ela a ele. Muito. Tanto. Tanto... uma história de amor de tirar o fôlego. De romper com o mundo e tudo o que nele conste e se conheça. Querera tanto que ele fosse louco por ela. Que obcecasse por ela. Que a quisesse acima de tudo. De qualquer forma de ser. De tudo e de todos. Um amor de enjoar. De novela. De conto e de história. Mas não. O enterrador estava ali. Pronto para carregar com a terra. A terra a depositar no buraco. A retornar ao local de origem. Cavar a própria sepultura. Morrer e ser enterrado onde queremos. Um direito difícil de adquirir mas conseguido ao final de muitos anos de lutas. E a ela a quem nunca interessaram as lutas, usufruía agora desse direito. Punha-lo em prática. Começa a cavar. O sol esconde-se por detrás do monte violado. As mãos pequenas posicionam-se ridiculamente sobre a pá. Não tem pressa. Poderá descansar sempre que queira. Não há mais pressa. Após a decisão tudo é pacífico. Existe uma serenidade no corpo que há muito não sente. Deixou de transpirar de ansiedade. Deixou de se interrogar o que fazer. Simples. Paz. Não há orgasmo que lhe valha. Nem coito que deseje. Nada. Não há fome. Não há sede. Nada. Vácuo. Um negro de luz. Retoma o trabalho. O processo é lento. Ainda que tenha escolhido o melhor local este encontra-se repleto de pequenas pedras. Restos da mãe rocha. Anoitece. Decide parar. Não sopra uma brisa. O vento nega-se a fazer sentir. Nada se faz sentir. Nem o luar. Somente as estrelas presenciam aquele corpo coberto de pó. Deita-se sobre o pequeno monte de terra já retirado. Sobre a plataforma do enterrador. Dormir sobre a própria campa. Sobre o coveiro da campa. Adormece. Em sonhos ele. Sempre ele. Maldito. Amo-te. Amo-te. Porque não me amas? Porque não me amas se eu amo-te tanto? Deverias amar-me. Deverias achar-me especial. Deverias sentir-te privilegiado. Deverias... Porque não me amas se eu te quis amar. E consegui. Amo-te. Porque não me amas se me mostrei. E revelei. E... amo-te. Vomito-me de amor por ti. Sente-me. Amanhece. Lentamente. Tão lentamente que parecem dias. Dias sem noites. Somente um sol nascente. Eterno. Ali. Pairando baixo no horizonte. Agarra na pá e prossegue. Que horas serão? Não sabe. Com ela apenas o seu corpo e o vestido imundo que traz colado aos seios e às pernas. Não escreveu nenhuma carta de despedida. Não avisou ninguém. Será um solitário não registado. Mais uns dos que agora começam a serem descobertos em grande número. Mais um que calou o destino. Mais um. O solo ergue-se. Finalmente ergue-se e queima. A pele morena tinje-se de suor. Termina o buraco. Ou pensa que o termina até se deitar nele e constar que não existe espaço para o corpo. Só de lado. Pensa em retomar. Ri-se. E porque tem de ser de costas? Porque não podemos enterrar os mortos de lado? Porque não pode ser ela enterrada de lado? Que de lado fique. É importante? Afinal... é especial. Ri-se. A gargalhada ecoa na parede da montanha dilacerada. Sente-se feliz. Ou o mais próximo que conhece da felicidade nos últimos tempos. Ata o cordão à alavanca. Entra no buraco e deita-se. Magoa-se no braço esquerdo que bate numa pedra. Não faz mal. Que importância tem a dor naquele momento? Não pensa. Não pondera. Nada a pensar. Não existe espaço para um último momento. Para uma última reflexão. Para um momento de silêncio. Para compadecimento de si mesma. Puxa o cordão. A plataforma ergue-se. Devagar. Mais lentamente do que previra. Eleva-se a cerca de um metro e meio, gira sobre si mesma e a terra é atirada com força sobre o buraco. As medições foram bem feitas. Ainda que a olho. Ainda que sem grande método. Sente o impacto da terra sobre o corpo. O cheiro do pó. O escuro. Estranhamente não se arrepia. Não se engasga. Não sufoca. Somente escuro. Um escuro terrível. Um escuro e um cheiro a terra intensos. Estranho. Não morre. Não sente a vida a esvair-se. Não sente nada a não ser um imenso escuro e um imenso cheiro a terra. Aguarda. Quanto tempo passa? Quanto? Já deveria ter sufocado. O corpo não sente o peso da terra. Estranho. Sente-se envolvida. Quase que poderia afirmar, deliciosamente envolvida. Nada. Aguarda. Ri-se. Sim. Consegue rir-se. Vem-lhe à mente a imagem do seu egocentrismo. Especial. O querer ser especial. Para alguém. Para ele. Pois seja. É-o. Não morre. Porque não morre? Grita. Quer morrer. Porque não morre? Quer sufocar. Não há direito. Não é justo. Ela só queria calar a mente. Só se queria calar. Só queria morrer sentindo. Sente. Mas não morre. Apenas o escuro e o cheiro forte a terra lhe fazem companhia. Nem a pedra sob o braço esquerdo faz notar a sua presença.

3 comentários:

  1. "The Dream Of An Angel’s Funeral I

    Awakening from a mysterious sleep
    Dreamed in the darkest possible cave
    He can feel death coming,
    But he is still breathing
    As he curses the paradise he was cast from
    To walk in the dark
    Listening only the far bells toll
    And the cries that pierce trough eternity.
    And although he knows
    That tomorrow he shall be dead
    He still dreams of her
    But now wishes she had never existed,
    But still he yells and cries
    And she no longer ears him…
    Trying to sleep one last time,
    Feeling already the boredom in death,
    His now cold eyes
    Red of so much blood cried
    Stare at a piece of stone,
    Risen from the deepness of the night
    Covered by black roses and orchids,
    That shall become his tomb too
    After the paradise has died
    In that sad and misty graveyard
    Under the pale face of the Night Prophet…
    His choice his irrevocable
    So is the result
    Defying the natural death
    Forgetting the warm blood
    Fleeing from coherence
    Dividing the Senses
    Finding ataraxia
    But bringing a sad fate
    By invoking death
    Asserting his desire
    Claiming his arrogance
    By the bitter taste on the throat
    And the poison in his veins…
    Life is once more defied
    As his powers begin the vane
    For he has tasted the forbidden fruit
    As a sharp blade tastes betrayed flesh
    And still he doesn’t regrets
    To have dwell into the oblivion
    While the sinister scenery was agonizing
    But he wishes he could forget he used to live.
    The time was propitious for a sacrifice,
    The acid core of his soul
    Choose the other side of the mirror.
    Taking a final look to where his soul rests
    (and where his body shall rest too)
    he spreads his wings above the cold grave
    and flies towards the dark sky;
    high above the clouds
    where the poison starts to react
    freezing his black wings
    as he falls to nothingness
    unable to do nothing more but to listen to the silence of the fall
    the silence of Death…"

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  2. Sem me perder em elogios... é caso para dizer que és uma alminha complexa... ;)

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