segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Lavanda


Veloso - Tentação da carne

Eu conto-te. Conto para que saibas. Ainda que nada haja a conhecer. Uma circunferência. Um ciclo iniciado após uma volta. Conto-te. Existia uma insatisfação que lhe corroía os ossos. O abrir a porta de madeira da casa. Aquela mancha junto à fechadura da porta. Esperava-o. Confrontava-o. Com a noite. A noite passada dentro das paredes encerradas por aquela porta de madeira. Um beijo nos lábios. Um sorriso. Ou um caminhar para lá. Para longe do corpo dele. Distraidamente sempre para longe. Porque há sempre coisas a fazer. A ajeitar. A arrumar. A delinear. A projectar. Dois corpos que se movimentam num mesmo espaço. Com pequenos. Leves. Breves toques. Uma mesa e quatro cadeiras. Duas cadeiras ocupadas. E o silêncio. O silêncio mesmo quando não existia silêncio. Um olhar na toalha branca. Imaculada porque se quer imaculada. Diz. Sim. Diz-me como te correu o dia. Quem? Sim. Fala-me do teu dia. O meu? O meu... Sorrisos. Breves. Um beijo de fugida. A loiça. O sofá. Pousa a cabeça no seu ombro. Mais um beijo. E dois corpos sentados lado a lado. Ele loiro. Ela morena. Distantes. Distantes pelo enjoo. Pelos dias e dias de toques. Pelos dias e dias de proximidade. Poderiam ser interrompidos com choros. E bebés. Mas não. Apenas o silêncio do noticiário da televisão. E um nevoeiro pairando sobre o que já não era.

Rompe-se a corrente.

Ela era vento. Era chuva. Era Inverno. Era fogo. Era mar. Ela era riso. E sorriso. E viver. Era ruiva. E morena. Era o sofá desarrumado. E o pavimento sujo. Era migalhas na cama. E manhãs atribuladas. Era fugida. E desassossego. Era vertigem. E suor. Era televisão desligada. Era música em silêncio. Um gemido. Um olhar. A cumplicidade. Era ele. E era ela. Eram outros. Que se passeavam por ela. Era ciúme. Era medo. Prazer. E prazer. E amor descomplicado. E amor porque te quero. Amor porque sim. E sim. É assim. Amo-te. Amo-te. É desejo. Que não quero perder. E saturar.

Corrente inexistente.

Hoje ele senta-se no sofá. Os dois loiros. Em frente ao noticiário. De cabeça contra o ombro. E um sorriso. No sofá branco. Depois do jantar na mesa com toalha vermelha. Imaculada. Depois do beijo de fugida. E dos dias. Do Conta-me como foi. Sim? O meu? Nada de especial. Quem? Ah ela. Ah ele. Sim. Sim. Temos de ir. E fazer. Sim, tens razão. Tenho sono, vou deitar-me. Tudo bem. Não te preocupes. Ele chora. Eu vou lá. Sim. E no rosto a segurança de sabermos qual a nossa infelicidade. E nas mãos as referências apreendidas e aprendidas. No cabelo o sabor de quem provou. Na boca a esperança de um dia voltar a ser. Um retorno.

Nada. Nada. Nada mais a acrescentar. Conto-te. Contei-te. Parte.

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