quinta-feira, 9 de julho de 2009

Lisboa


Misha Gordin

Anda um louco à solta na rua. Um louco que esbraceja. Que grita. Chama de putas. Ou chamará por elas? Putas. Vai pró caralho. Aponta os carros e odeia-os. Fulmina-os com os olhos. Ameaça com as mãos. Eu já conheço o louco. De outras ruas. E desta rua. Conheço-lhe o cabelo empastado. As calças rasgadas e duras. A barba mal semeada. O casaco de Inverno nas manhãs de Verão. É um louco de quem alguns riem. Para quem alguns voltam a cabeça. Para quem alguns sorriem. Mas ele nunca olha em ti. A luta dele, a guerra dele é sempre para quem não está. Para quem não passa. Para algo mais longe do seu corpo. Os carros. O outro lado da rua. Uma guerra para com o passeio em frente.

Reparei-lhe no cu pela primeira vez numa manhã de Inverno. Na minha rua. Ele passava todas as manhãs na minha rua. Reparei que tinha um cu bem feito. Que enchia as calças. Quase que consegui visualizar as covinhas que o cu poderia fazer. Ele pedia-me cigarros ou moedas. Se não tivesses moedas pelo menos um cigarro. O cabelo crescido. Enrolado, empastado. Um olhar de perdido. De quem viaja. De quem está sempre de passagem. A barba crescida que cola. E uma voz que não condiz. Empastada. Por vezes passava a falar sozinho. Outras, alto e bem constituído de andar pesado caminhava sobriamente como se tivesse um objectivo. Passadas largas sem pressa. Não há horas marcadas.


Não a tenho visto. A minha, a nossa morena. Nossa porque ela saiu do anonimato por ti. Porque tu existes e eu existo. A última vez que a vi estava no outro lado da rua. De pé. Nunca a tinha visto de pé. Sempre de cócoras. Sempre baixa. Sempre olhando para cima. O corpo mirrado a pedir um consolo. Com o sorriso no olhar de quem pede e agradece. É magra. Muito magra. Apoiava o corpo numa perna. Encurvada para a frente como se os anos lhe pesassem. Tenho tirado a moeda antes da esquina. Procuro-a. Tento vê-la. O sorriso dela faz-me bem. É bom sentir este carinho. Mas ela anda ausente. Ou pára em uma outra esquina.

Certo dia vi-o comer de uma caixa plástica. Senti-me revoltada. Uma amálgama de molho e carne e pão. Pedaços de frango boiavam em gordura. E um pão seco ao lado e esmigalhado lá para dentro. Quis poder fazer alguma coisa. Mas na minha hipocrisia continuei. Ele não se tinha de pé. A perna não suportava o seu peso e era com as duas mãos no chão ou agarradas à perna frágil que ele caminhava. Quase de cócoras. Exibia a perna para que lhe vissem a deficiência. Dizia-me sempre bom dia e agradecia a moeda. No princípio do mês a minha conta da doação contava com ele. Que tivesse uma boa refeição por um dia. Ou más por diversos dias.

Ela é feliz. Aparenta ser feliz. Tem uma graça divininal. Acabada de sair de um filme de Fellini. Grande, enorme. Na frente um par de mamas enorme que lhe cai sobre a barriga. Às costas uma manta no Inverno. No Verão prende a t-shirt à cintura e exibe as ancas largas. O peito bamboleia ao som do seu sorriso. É doce como mel. A pele acetinada e sensual. Fez-me olhar na miséria de uma outra forma. Encontramos sempre beleza ainda que possamos ficar tristes. É uma louca passiva. Vagabunda descalça. Dorme por aí à porta de bancos. Uma graça.

Como ficar indiferente? Tinha 80 e tal anos. E de pé resistente, ao frio e à chuva estendia a mão. De lenço na cabeça e bengala na mão. De pé. Imóvel. Ao vento e à chuva. Mexia comigo. Muito. Lágrimas no comboio. Mais um fado triste. Um neto toxicodependente que lhe roubava a ela e à filha. E a co-dependência de nada fazer e tudo aceitar. A impossibilidade de poder ajudar. Um nó na garganta. A euforia. No dia em que perdeu a bengala... o meu desespero pelo desespero dela.

Agora. Agora, alguém aqui ou ali saberá que existem. Como eu sei. Deixem de ser anónimos.

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