sábado, 25 de julho de 2009

temperatura


Manuel Alvarez Bravo

Ele fugiu. Trocou de botas com ela no meio da ceara e fugiu. Numa marcha rápida por campos e milharais. Lembro-me que quando ele fugiu eu senti. Senti que se passava algo. Quando ele vinha ao meu encontro eu sentia-o. Tal como senti a sua dor pela mãe. As forças fortes dos laços. Quando pressionados ambos os lados sentem. Porque para se dar um nó são precisos dois lados. Duas forças contrárias.

Sonhei que me desarrumavam a casa à procura de algo. Enquanto eu dormia. Acordei e tinha no chão da cozinha parafusos, papéis, ferramentas, roupa, loiça, uma imensidade de objectos. Eu dormia. E quando acordei perguntaram-me se eu tinha facturas referentes ao trabalho que estou a fazer. Assim. Sem ter tomado ainda café.

Ontem torturaram-me pela boca. Duas mulheres deitadas, inclinadas sobre a minha boca aberta. Perfuravam, raspavam, limavam, roíam. Poliram-me os dentes e eu pensei em prata. Pensei em tortura. Pensei em ficção científica. Pensei que elas eram sádicas e eu uma vítima. Hora e meia em tortura. Para depois me enfiarem agulhas. Mais abaixo. Espetarem-me agulhas e deixarem-me dormir. Roncar de barriga para cima. Lembrei-me dele.

Acredito que a Laura Diogo não tenha sido rasgada pelo Ronaldo, ou Reinaldo. Acredito que tenham apenas fodido. Que ele não a tenha rasgado. Ainda que todos nós preferíssemos a existência da agulha e da linha.

Vou à praça. Vomitar-me com os cheiros da praça. Junto às bancas do peixe fresco. Olhando os mendigos de mãos sujas e castanhas. Depois olho-lhes para os pés. Vou sentir qualquer coisa que não esta manhã. Sono. Café. Cigarros. Sumo de laranja. Cadernos. Dedos. Banho. Panos húmidos.

Estou a tentar escrever. Talvez consiga.

Tento.

Um dia ela tentou a morte. Creio que não a desejava. Queria uma festa. Um olhar. Um olhar sobre ela. Um toque de pele. Eu espreitava por detrás da porta. Creio que inicialmente não entendi. Mas chorava. Como choram as crianças quando sentem. Quando pressentem. Choram porque vêem a azáfama. Vêem o choro. Vêem lágrimas. Que seria de mim? De nós? Que teria acontecido se a morte tivesse chegado naquele dia. Naquela tarde? Eu que nunca pensei em matar-me. Podia antes partir uma perna. A bacia. Ter uma doença. Mas a morte? Essa coisa definitiva. Sem retorno. Sem volta. Desconhecida. Só simulação. Pelo chicote. Pela anulação. Pela dor. Pelo caminhar de joelhos. Pela força. Pelo amor. Sentir a morte pela entrega. Mas duas pessoas nunca se tocam. Existe sempre um espaço de nada. De átomos e de vazio. Eu nunca toco em ti porque não existe essa possibilidade. Eu que caminho tocando pessoas. Deixando-me tocar por pessoas. Afinal nunca as toco. Ou toco. Na cabeça. Na cabeça.

O meu amante tem um caralho grosso que me enche a cona. E eu gosto. É um labrêgo. Como eu. E eu gosto.

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