terça-feira, 14 de julho de 2009

Napoleão


Kiriko Shirobayashi



Madeira branca. Vidro transparente. Uma janela. Cinza. Daqui vejo o vento. Todos os dias o vento.


Estás velho. Mas os teus olhos brilham. Como se hoje fosses a criança que eu nunca conheci. Como serias? Brincalhão? Divertido? Sério? Montavas cavalinhos de pau? Acredito que sim. E que erguesses espadas na mão. Que colocasses a ponta da unha na boca. Mordiscando. E que as pintas castanhas dos teus olhos cinza-azul-verde fossem mais pequeninas. Saltavas para o colo do teu pai? E que te dizia ele? O mesmo que tu a mim? Rias? Lembras que rias? E que fazias cavalinhos com as tuas próprias pernas? O esforço. Sim, o esforço. Uma em cada perna. Saltitando. Rindo. Mais pai, mais. Com mais pressa.

Se pudesse dava-te uma flor todos os dias. Sei que tens prazer nestas pequenas coisas. E enchia-te a casa de jornais. E uma loja do chinês. Para teres muita quinquilharia. Para encheres as prateleiras de bonecos, taças, copos, inutilidades. Sempre apegado a inutilidades. Os dourados. Lembras que pintavas tudo de dourado? E como a mãe não gostava... e o anis? No sótão. Os Domingos à tarde. Nós, tu e toda a pequenada. Nos montes. Na serra. Calhaus. Areia. Terra. Esfolar os joelhos de encontro à vida. E as conchas. Caixotes e caixotes de conchas. Para pintar. Para pintarmos. E os chapéus de cartolina que nenhuma de nós gostava de usar. Os caracóis em caixas vazias de detergente e os bichos da seda em tabuleiros gigantescos que levávamos a passear na parte detrás do carro. És lindo. Sinto-me muitas vezes como tu. Com esta vontade de fazer coisas. Com este querer mexer e andar.

Arrastas a voz. E eu não te entendo. Sofro. Dói. Não entendo. Não entendo. Coloco-te perguntas só para que penses que te oiço. Oiço mas não entendo. E os teus delírios, sempre tão semelhantes às histórias que me contavas. Na cama. No Inverno por baixo dos lençóis. Lembras-te de roeres a pontinha do lençol? Os teus beijos. E a tua mão na minha. E a forma maravilhosa como imaginavas e narravas histórias. Devo-te isso pai. Devo-te este meu querer criar histórias. Este meu querer contar. Este meu querer. Obrigado. Sempre foste um sonhador. Um poeta. Um que se deixa ir. Um dos que não se faz mais. Que cresceu por ele. Já te disse que te amo? Já. Creio que sim. Digo-o. Tenho medo que vás e eu não tenha dito. Então digo. Sim. Amo-te. Sei que fizeste o teu melhor. O possível. Sabes pai, há dias assim. Dias em que me sinto criança. Dias em que a minha felicidade seria poder dar-te a minha mão, olhá-la e vê-la de novo pequenina.

2 comentários:

  1. É bonito e comovente, este texto!

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  2. Todos temos sempre um cenário, que como um relicário guardamos e onde colocamos os que amamos. Fora da duração e da corrupção do tempo. Talvez um pouco egoisticamente admito, como imortais bonecos de cera. Seja como, for hoje fizeste-me lembrar do meu. Dias de Verão que naunca mais acabavam, e os cães vadios que adorava levar para a praia. Que raiva de nao ter guardado todos os pauzinhos de gelado e o meu passado, na mesma gaveta.

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