sexta-feira, 17 de julho de 2009

Lúcifer


Misha Gordin

Não posso fazer barulho. Teclo devagar para não fazer barulho. Para não interromper este silêncio que se sente. Para não ser mais forte que o chilreio dos pássaros. Devagar. Lentamente. Não quero acordar o estranho que dorme na minha cama. Um estranho que escolhi ao acaso. Ontem. De noite. Num bar, numa rua com portas abertas e pregões nas paredes. De calçadas lavadas e edifícios estreitos. Não quero. Não quero que o estranho que escolhi ao acaso, acorde e me veja aqui nua, escrevendo. Não ponho música. Eu que escrevo sempre com música. Não fumo. Eu que fumo muito quando escrevo. Somente o café me acompanha. Digo que foi ao acaso mas é mentira. É mentira. Demorei cerca de 33 minutos a escolhê-lo. 33. A ele. Ao que está dormindo na minha cama. Com um sono leve. Com uma respiração de criança. O estranho que dorme na minha cama. Vi-o. À porta. Parado. Sorrindo. Com ar de malícia numa mulher. Com ar de lascívia no rabo de uma mulher. O estranho deitado na minha cama. Segurava na mão um copo e na boca um cigarro que movia ao som do olhar fixo no rabo da rapariga. Que saltava de contente, de conversa e de riso à porta do bar. E foi aquele olhar que me fez parar na porta. Encostar-me à ombreira e olhar, também eu, no rabo da rapariga. De calças azuis, apertadas, coladas, transparentes e descidas. E do rabo olhei nos olhos dele. E os dele encontraram os meus. E os meus viraram rabo. O rabo dela nos meus olhos. Um rabo que segreda promessas. De abertura e de prazer. De joelhos e intensas. De loucura e gemer. E os olhos dele desejaram os meus em forma de rabo. Sorri-lhe com a boca e com os olhos. Disse-lhe que morava perto. Tão perto que era um instantinho. Fácil. Logo ali. Ao virar da rua. Na outra, mais à frente. Tão perto que podia ir e vir sem se aperceber da viagem. Tão perto que seriam dois, três minutos. Que não se iria cansar. Que em casa tinha vinho, e cerveja e cigarros. Um sofá e uma cama. Acompanhou-me. De olhos postos no meu rabo. No meu corpo em forma de malga. E nos passos que dei senti os olhos dele. E nas escadas que subi uma mão. E na porta que fechei os lábios. E na cama onde o deitei a sua transpiração. Mas agora não posso escrever mais. Não quero acordar aquele estranho que dorme na minha cama. Não quero olhá-lo com estes meus olhos matutinos. Que já não têm a forma de um rabo. Que já não são rabo. Estão borrados. Frágeis. Matinais. Espelham quem sou em intimidade. Eu. E eu posso partilhar a cama onde dorme o estranho que tento não acordar. Mas nunca partilho este meu olhar em forma de eu. Este meu olhar matutino.

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